Metade Maior, de Julieta Monginho

A acção deste livro decorre num tempo próximo, um tempo que já se faz anunciar. Um mundo pós casas de penhores, dos restaurantes fechados, das lojas encerradas ainda ostentando os letreiros dos saldos (esse grito final de desespero). Uma sociedade onde tudo é privado desde o governo à ordem pública.

A sua maior ameaça é o crescimento demográfico. O departamento do ajustamento demográfico é então chamado a atuar. Fá-lo com os seus matadores e com a ajuda da morte. Pouco fiel é a morte, sempre pronta a servir outros senhores.

Estamos perante a sociedade dos sete pecados letais, decência, lealdade, respeito, modéstia, justiça, tolerância e compaixão. Este livro tem um relato próximo do fantástico, da magia invocativa das loucuras. Da loucura que imita a lucidez.

 

A união improvável de personagens vai desencadear um conjunto de eventos que constituem a acção deste livro. Fernão, o velho de chapéu de feltro e que veio de um outro tempo, maestro que se propõe acertar tanta voz perdida. Tom, que no seu caderno de esboços desenha sinais de repovoamento. Ismael, o livreiro, mágico de outros tempos que acredita encontrar nos livros linhas de convergência por onde puxar. Miguel, o miúdo sombra. Mimi, a mãe órfã que tinha na fuga a sua identidade e finalmente Emma, a bebé nascida no chão pisado de todos os dias. Serão eles a luz de uma salvação possível?

Acreditam que a solução está no repovoamento, mas só Simone, a inspetora da privada Csi.corp, sabe que existe uma guerra em curso entre o impulso adaptativo e o natural e se interroga sobre a fase em que nos encontramos. Só ela rejeita a lógica da loucura e conserva em si, como uma doença crónica, essa espécie de rebeldia contra a maldade, que em pequena aprendeu ser pecado.

No meio da acção surge um assassino, um intrometido, alguém alheio ao processo do ajustamento demográfico, também ele trabalha com a morte. A sua acção descontextualizada, usando técnicas do passado, põe a nu os que se encontram ao serviço do poder instituído. A morte de mãos dadas com a esperança. Também acontece.

Por vezes, temos a impressão de que este livro não existe, que aquele mundo é uma impossibilidade, com o seu ponto de fuga entre a loja da Felicidade e a Avenida. Que ninguém abre um capítulo com a frase: Tom acorda com o desejo de que aquele seja um dia raro. Ou: Fernão sorri, o que equivale a uma longa dissertação silenciosa. Este livro encerra em si a magia do flautista de Hämlin, capaz de nos arrastar num reencontro de cidadania, como aquelas pessoas que habitam a avenida, subindo-a e descendo-a sem sentido aparente e que um dia encontram a força para se libertar. Um apelo que julgam emanar da criança ressuscitada. São o coro que congrega todas as vozes.

Neste livro, a loucura converge com a lucidez. Só assim nos é permitido lê-lo, esse é o segredo da escrita da Julieta Monginho. Uma escrita maior capaz de criar um fascinante universo de personagens, de aprofundar a espera e de lançar um olhar acutilante sobre a sensibilidade humana, os seus sonhos e as suas ironias. Apetece agarrar cada uma destas frases.

Em Metade Maior entramos, por antecipação, num mundo de que já sentimos fazer parte. Também nós procuramos uma saída, onde

Nenhuma voz deve ser descurada.

 

Editorial Estampa – 2012

Metade Maior JM