Para MM O casaco verde Na neve artificial a montra estava imaculada. Algo banal na confusão da cidade. Tóquio. A mulher, apertada no casaco e nas luvas, deixou-se ficar a ver a montra. Não reparou nos detalhes da época, cintilantes, bolas e outras luzes. Não. A mulher fixou o olhar no casaco verde eléctrico, um casaco de pele falsa, tingido de cor berrante, uma provocação que não pertencia ao cenário. Fascinada, mirou-lhe o detalhe da gola curta, os bolsos metidos para
dentro, o verde a perder-se num corte de três quartos, um casaco abaixo do joelho. Ao mesmo tempo, e talvez por isso, o casaco era pequeno, de um tamanho mínimo, pouco vulgar nas montras. Como se fosse feito à medida para ela, a mulher pequena que o namorava com um rosto fechado, rosada do frio, as mãos escondidas em luvas de pele preta e vermelha. Um casaco à sua medida, repetiu. Há muito que não se importava com esses pensamentos circulares, pensamentos que, por vezes – muitas vezes – saltavam num sussurro como uma canção que se pode fingir dizer. As repetições até lhe traziam algum conforto. Há muito tempo, sozinha, parecia um bicho de conta enrolado. Depois, sem ter crescido, assumiu a sua pequenez com certo descaramento e fez questão de a sublinhar para que fosse óbvia e, por isso, calada pelos outros. Anos da adolescência a ouvir dizer que devia ter crescido mais, que comia pouco, que estava demasiado magra. Há quanto tempo? Decidira muito cedo que o silêncio se podia instalar mesmo antes do grito ou do comentário menos adequado. Passou a ouvir apenas o que queria. Agora, mulher feita, depois dos filhos, do casamento, da separação, da morte deste e daquele, decidira que todos os pormenores não são coleccionáveis. São e existem para esquecer. Voltou ao casaco. Imaginou-o no seu corpo sem pensar no corpo. Apenas aquele abrigo bizarro ou extravagante, já ouvia a mãe a dizer na noite em que, por erro, levaria o casaco para a proteger do frio Cristo! O que é isso que tu trazes vestido? Um casaco, mãe, diria a mulher avançando pelo corredor, para o jantar, para a obrigatoriedade. Sim, o casaco no bengaleiro ficaria ali a perturbar tudo o resto e a mãe sentiria essa invasão mesmo que apressada nas coisas do jantar. O casaco tinha um certo poder. Parecia-lhe evidente. A mulher reparou no suporte de metal onde o casaco se exibia com arrogância ou talvez ousadia. Sim, o verde condizia com a prata e ela tinha aqueles sapatos com umas flores aplicadas. E um vestido… que importa o vestido? Pouco. O pêlo do casaco seria o único alvo e, não sendo muito desconfortável, excessivamente quente ou por ter um forro riscado, desses que arranha, então era a roupagem que se imponha a tudo. Nada podia competir com aquele verde. Verde quê? Fascinada com a cor colocou a mão no vidro, a querer tocá-lo, num gesto involuntário. O silêncio da cidade, carros e pessoas, fim de tarde apressado no território desconhecido em tudo, da linguagem aos costumes, só existia na cabeça da mulher. Depois, perdendo este suspender de vida, um homem tocou-lhe no ombro. Sorriram. Ela voltou ao casaco. Queres? Encolheu os ombros. Querer? O verbo em si era tão pesado, pensou. Ficou calada. O homem dirigiu-se à porta da loja, na esquina da rua.
Estava fechada. Pendurado na porta, um papel com dizeres em japonês exibia-se arrogante e eles riram da forma ridícula como tudo se passava. Não reconhecer o sítio onde se está pode ser perturbador. O homem pegou no braço da mulher e levou-a, rumo ao hotel. Ela ainda se voltou para ver o casaco uma última vez. Depois sorriu e ouviu o monólogo do homem ao seu lado. O tempo passou. Muito tempo, pareceu-lhe, embora tivessem sido meses apenas. Era o seu aniversário. Não queria nada do que a esperava e, por isso, teimava em ficar na cama a ver as horas: sete da manhã, oito, nove, nove e quinze, nove e meia. Às nove e trinta e dois minutos saiu da cama. Evitou o espelho do aparador antigo e foi para a casa de banho. Precisava de uma hora para ser ela. Para se compor, para fabricar um qualquer envelope que lhe permitisse fazer o papel de quem pode ser uma estrela. Por um dia. Ao meio dia em ponto desceu as escadas, recusando o elevador, como uma decisão súbita de quem não precisa de nada facilitado. Abriu a porta de ferro e entrou no carro do homem que a esperava com um ramo de jarros, as suas flores tristes. No restaurante estaria a família. O dia era apropriado. Um domingo de inferno, pensou a mulher. Antes de entrarmos… tenho uma coisa para ti. E uma caixa estranha, comprida, uma caixa repousando no banco de trás foi-lhe entregue com um sorriso ligeiro. O homem não era efusivo. E ela agradecia-lhe essa gentileza. Abriu a caixa e passou a mão pelo casaco verde, o casaco da montra, a impossibilidade japonesa. O homem concentrou-se no trânsito. Foste a Tóquio por isto? E outras coisas? Não sei o que te diga. Não digas nada. Foi feito para ti.
Patrícia Reis
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