RAIMUNDO | CONTO VII | COLECTIVO NAU | Paulo M. Morais

 

 

“Dizem que Raimundo conhecia muito mundo.” Foi numa biblioteca que ouvi pela primeira esta frase, seguida de alguns diz-que-disse sobre este Raimundo, homem que pelos vistos parecia conhecer muito mundo. Não passou de um cochicho entre dois funcionários, sentados à secretária onde se levantam e entregam os livros requisitados, mas foi um cochicho bem planeado, cirúrgico, discreto mas ao mesmo tempo suficientemente vincado para despertar o interesse aos que o escutassem. Eu escutei. E enquanto me dirigia a pé para casa, com aquelas sílabas duplicadas – “raiMundo”, “Mundo” – a ressoarem na minha cabeça como um mantra hipnótico, o Raimundo com aquele mundo todo agarrou-me. Ao sentar-me à secretária de casa, já sabia que também eu teria de partir à procura deste homem oriundo da vila de Cuba. Nos dias seguintes, procurei convencer os meus parceiros do Colectivo NAU a fazermos uma investida à dita terra alentejana, ali para os lados de Beja.
– Vamos lá fazer o quê? – perguntavam eles e elas, à vez.
– Deslindar o boato do Raimundo. Vocês não ouviram?
Uns que tinham escutado, outros que não. Uns que acreditavam, outros que não. Uns que até iam, outros que nem por isso. É que dizer, lá isso dizia-se muita coisa. Que Raimundo era filho de faroleiro, andara na guerra, andara no mar, casara e fora feliz, contava histórias, era bom homem… Até se dizia que as ditas viagens ao resto do mundo afinal eram imaginadas, retiradas das páginas de livros, que tudo não passava dum raio dum Raimundo que lia livros! Ir à procura dele? O mais certo era ser caça ao gambozino, defendiam. Eu teimava que não podia haver fumo sem fogo. Podia lá um boato tão sólido não assentar num fundo de verdade? O Raimundo tinha de andar por aí.
– E se vocês não forem, eu vou.
Taxativo. E, no entanto, não fui. Estive quase a ir, numa excursão prometida por uma paixão primaveril, mas os amantes preferem dar prioridade a outras descobertas do que ir à procura dum Raimundo. Passou-se a paixão, esfumou-se a viagem, chegaram as férias de verão. Desconcertado por dentro e por fora, precisado de arejar a cabeça, necessitado de mãos amigas a passar pelo meu cachaço, rumei a Norte, para me alojar em casas de família, em vez de ir para a desconhecida Cuba sulista.
No trajecto até Coja, envergonhado da minha cobardia, tentei consolar-me. Vejamos meu rapaz… Se tivesses ido a Cuba, como procurarias o Raimundo? Fazias de detective e perguntavas aos velhotes do café central, às senhoras à janela, ao pároco se a vila ainda o tiver? Fazias de descobridor, perdido por ruelas, a ver se esbarravas nele numa “coincidência” romanesca? Fazias de cão de caça, a farejar um rasto invisível de fantasma, até forçar o Raimundo a sair da toca? E se o encontrasses, achas que ele te confessaria que não passava de um simples boato?
Cheguei a Coja enlouquecido por causa de um Raimundo. Devia era ir consultar o Nunes, anunciado na rádio local, o Nunes que “resolve todos os seus problemas” e como bónus ainda endireita a espinhela do cliente. A locutora do programa de discos pedidos, apesar da voz grossa, é uma queridinha a cantarolar as palavras. Diz que espera o telefonemazinho para pôr a musiquinha. Usa inhos em quase tudo. Começo a marcar o numerozinho para fazer-lhe uma perguntinha: “Conhece o Raimundinho?” Não obtenho linha. Devem estar reservadas para os ouvintes habituais. Conhecem-se todinhos e, em directo, trocam beijinhos e recadinhos e amabilidadezinhas do tipo “as suas feriazinhas, foram boazinhas?”, “o seu bebezinho está benzinho? e o maridinho?”, “então que vai ser o seu almocinho?”.
Na praça central, sento-me na esplanada do café. Sou o mais novo do grupo reunido à mesa. Dizem que me reconhecem, que já estive aqui há muitos anos atrás. Não me lembro de nada, mas respondo afirmativamente para aproveitar a deixa. “Parece que sim, se tantos mo dizem… E o Raimundo já cá esteve?” Não sabem quem é esse, mas a mim sim. Dizem que era pequenino mas que ainda mantenho o mesmo sorriso. Sorriso? Concluo que estão mesmo enganados, tal como a senhora que me vem perguntar se sou o Valter Hugo Mãe. Digo-lhe que até posso ser durante uns momentos, só para ela ficar contente, embora não fosse assinar nenhum livro… Mas criança sorridente, aqui, no passado? Isso contradiz as minhas memórias. Uma criança que sorri é feliz. Terei então tido uma infância feliz? Talvez sim, talvez sorrisse, pois estive aqui com a minha mãe e é costume as crianças sorrirem ao lado da mãe. Talvez sim, talvez já tenha visto antes estas caras reunidas em volta da mesa do café, no largo principal da vila. E de repente, em vez de procurar a história do Raimundo, parece que estou a resgatar o meu passado.
Olho para as minhas mãos e vejo-as pequenas. Sou um menino, temeroso de falar às pessoas, sem querer actuar em público, a preferir ficar calado, a observar a vida dos outros a acontecer. Sou um miudinho à procura de um rumo para me orientar, um espaço para me aninhar, um timbre para me expressar, um ouvido para me escutar, um olhar para pousar a minha insegurança. Entre estas pessoas que dizem conhecer-me talvez esteja em casa, num mundo que também é meu, num tempo deslocado onde faço sentido. Não sei se sou um menino ou um homem, a fumar um cigarro encostado a um tronco, a pensar que o acordeonista da tuna de cantares, com os seus fartos bigodes brancos, bem que podia ser o Raimundo se isto fosse a Cuba alentejana.
Se tivesse de escolher alguém daqui para ser Raimundo, seria o “Rei da Praça”, homem de idade indefinida por causa do cristalino dos olhos azuis e atentos, boné cinzento na cabeça, barba rala no rosto, licenciado em “generalidades”, cumprimentado por todos que passam por ele, enquanto varre os passeios da praça ou puxa as cordas atadas aos burros Urraca e Ricardo que carregam a criançada em passeios à beira-rio. Ou então escolhia o nadador-salvador da praia fluvial, onde todas as tardes me sento numa espreguiçadeira a ler a Marguerite Duras e a queimar a pele, ele que já tirou cinco mortos do rio (nenhum dos quais chamado Raimundo), e que não tem tempo para grandes conversas por causa de ter de ir “tratar das babes”. Ou o João “Tralhão”, o tonto que em 1973 foi estrela de cinema na curta-metragem O Piano, rodada na aldeia vizinha do Piódão sob a direcção de Sinde Filipe. Ou ainda o sargento da guarda, animador-mor de um almoço de convivas da terra, contador de piadas e historietas, que se apressa a guardar os restos de comida para o cão “Djaló” enquanto os outros lhe gritam “é mas é para o teu jantar!”.
Durante o almoço, enchem-me copo e prato. Sabem que faço cerimónia e, por isso, estão sempre a encher-me copo e prato, em quantidades de já não cabe mais. E à medida que bebo e como, começo a envelhecer até à idade deste grupo de homens que tem unhas grandes, lentes grossas, aparelhos auditivos, e rio-me, rio-me a sério com os dichotes sobre as empregadas do restaurante, todas da mesma família, embora umas sejam filhas deste, outras sejam daquele, e a maior parte descenda de um velho encostado ao balcão do fundo, um Don Juan usado, com os pés para a cova, mas que permanece a esperança para qualquer um dos homens sentados à mesa: “Se ele ainda consegue…”
No cenário verdejante da Fraga da Pena, despeço-me à distância da gente do almoço, da praia fluvial, do café. Aqui também sobram memórias de namoros, especialmente dos rapazes locais com as estrangeiras que cá calhavam. Disso também não me lembro, até porque não tinha idade de namoros. Eu, se estive aqui antes e sorri, era porque estava com a minha mãe.

Subo ao cimo da fraga. Em redor, as silhuetas dos penhascos, debruadas a verde-floresta, cortam o azulado do céu. Uma estranha nuvem em forma de risco vertical assemelha-se a um elevador celestial. E num único voo estou mais nortenho ainda, em Trás-os-Montes. Dizem que Raimundo conheceu muito mundo. Eu conheço Vilarandelo, durante a segunda semana da minha quinzena de férias.
A terra está em festa. É Agosto profundo, como aquele da canção “Meu querido mês de Agosto” cantada pelo Dino Meira. A música aqui nunca pára, debitada por um sistema de colunas espalhadas pela vila. No passado, houve quem se aborrecesse com o barulho ao pé da porta de casa e tenha resolvido o caso à caçadeira. Um tiro certeiro e calou-se o pio ao altifalante pendurado no poste electricidade. Mas ao lado, nos outros postes, a música lá prosseguiu. Nas ruas ouve-se o último sucesso do Quim Barreiros, no salão de festas escuta-se o coro comandado por um jovem seminarista, ele tem o dom da palavra, é capaz de vender tudo com a sua vozinha doce, até uma actuação que em vez de três agrupamentos só vai ter um. Pouco importa, assegura, que as vozes que se ouviram são de anjos, que o mundo fica mais belo com a música acabada de escutar. E a plateia levanta-se, emocionada, para entoar o refrão do hino da vila, numa apoteose comunitária que culmina em salvas de palmas e profusos parabéns, para depois continuar no átrio – onde o fino teima em sair sem pressão, só vem espuma – e nas ruas com o corte e costura, a coscuvilhice, o falar mal, o desdizer. Esqueço-me da imperial mortiça pela lembrança do que disse um músico de uma localidade vizinha: “O vinho recorda-me os amores do passado.”
À mesa, nos almoços em família, não falta vinho. E eu, que devia estar à procura do Raimundo que conheceu muito mundo, tenho alguns amores a relembrar. Como maltratámos quem nos amou. Como nos maltratou quem amámos. Numa rua perto desta minha casa de família, um cão vive agora sem tecto. Os donos mudaram-se para um apartamento, abandonaram o cãozinho à sua sorte, e ele deixa-se ficar junto ao novo prédio, certo de que a porta fechada é apenas um engano. Come o que encontra aqui e ali ou o que os vizinhos lhe dão de esmola. Talvez o cachorro morra no inverno e acabe a sua agonia, que ele é como alguns amores, foi abandonado ainda em vida. Porém, há outros amores que nunca se esquecem, como o da placa que encontro no cemitério: “Para ti, Brown. Faz hoje 12 anos que alguém te roubou. Onde quer que te encontres, recebe carinho do teu dono.”
Eu nestas férias não quero chorar por causa de amor. Rejeito que me encham o copo do vinho que desperta a memória e folheio os classificados do jornal. Festança, é preciso festança, como o prometido nestes quadradinhos de texto, o saber dos 60 anos que veio de férias, os travestis especializados em principiantes, a safadinha que adora chupa-chupa, a ratinha quente, o grelinho avantajado, o rabo empinado, o bumbum a estrear, os peitos durinhos de fazer parar o trânsito, o furacão na cama que atende em mini-saia sem cueca. Bebi demais mas a festa ainda mal começou. Sangrias, cervejas, vinho verde. Shots de gelatina com vodka. Há procissão, concerto da filarmónica, barracas de farturas, jogos tradicionais, arruada da banda, festa de espuma, foguetório… O animador de serviço não tem mãos a medir – o que ele adora o jogo do pau de sebo para poder dizer “Queria ver as mulheres a mostrar como se agarra o pau!” –, está sempre a apregoar que “há fino fresquinho, água para lavar os pés, sumo para a canalha”.
De onde eu venho não se chama canalha à miudagem, não se mete um cabrão em cada par de frases, não há padres que já foram levados de carrinho de mão por terem bebido demais, não se puxa um banco para os que chegam, não se recebe um estranho em festa de família para comemorar o aniversário de uma matriarca. De onde eu venho não há mesas cheias de novos e velhos, quatro gerações juntas à volta do cordeiro, do leitão, dos peixinhos do rio, da cenoura e beterraba avinagradas, dos tomates frescos, e as pessoas dizem isso mesmo, “disto aqui não há em Lisboa”, e têm razão, não há as casas cheias, os risos, as cavaqueiras, as mulheres sem parança na cozinha, os prove lá esta aguardente caseira com bagas de zimbro, prove agora o licor de abacaxi, as histórias que se contam das idas à fonte para ver os rapazes, dos namoros com os olhares, dos bailes para a agarração, da carência de comida que se conheceu, grelos e batatas ao almoço, batatas com grelos ao jantar para não ser sempre a mesma coisa.
Nesta mesa enorme e cheia de gente, quem foi a Lisboa di-lo com a entoação de quem foi ao centro do mundo e não viu razões para tal alarido. Se calhar o Raimundo sou eu, um lisboeta perdido neste mundo português, um bicho da cidade exposto às raízes da nossa terra. Se calhar o Raimundo sou eu, encostado a um murete, à espera que uma vaca cague para cima de um dos números escritos no chão para ver se a poia premiou alguma das rifas que comprei. Se calhar o Raimundo sou eu, a caminho de um sítio que sempre quis ver, a aldeia transmontana chamada Morais, da qual já me tinham falado por causa dos céus estrelados.
Em Morais não fiquei para ver as estrelas. Mas na tarde em que lá passeio encontro um portão enferrujado com corações e um banco de acolher viajantes. Sento-me a olhar para a paisagem recortada de amarelos e verdes claros, quase secos, pontuada por oliveiras pálidas, a pensar que gostava de suspender o tempo. Devia ter ido procurar o Raimundo à Cuba alentejana, mas estou aqui, quase no extremo oposto, nesta aldeia que invoca ser “o umbigo do mundo”, porque há coisas que querem ser escritas assim, de modo contrário ao planeado, através de encontros que se decidem numa anotação inesperada ou num rodapé fortuito.
A viagem está no fim. Afinal quem é o Raimundo? Talvez alguém capaz de esperar que a “vaca cague para nós” e de ler José Saramago. Talvez seja um homem capaz de se ambientar ao lado do senhor professor que cita filósofos, escritores, cientistas e políticos numa conversa sobre desertificação do interior, e que depois se vá sentar ao lado de um par de velhotas que só dizem caralhadas. Talvez seja alguém que pensa que os escritores regionais são mais importantes do que nunca, pois há tradições e receitas e espécies e expressões que estão a desaparecer e é preciso que alguém, pelo menos, as perpetue em papel impresso. Talvez o Raimundo seja alguém que combate as mentes pardas que esfregam as mãos de contentes sempre que se apaga mais um pouquinho do Portugal “pimba”, pois isso só pode significar que vamos logo ficar todos mais eruditos, cultíssimos, evoluidíssimos. Talvez seja um Raimundo que aperta a mão do senhor doutor enquanto escarra para o chão e cita Padre António Vieira ao som do Marante.
Passei quinze dias no encalço de um boato que ouvi numa biblioteca. Dizem que Raimundo conhecia muito mundo. Não vos sei dizer que mundo era o dele, mas sei o mundo que encontrei: uma galáxia de contrastes. Num momento, o automóvel desliza por uma paisagem rural, sem casas à vista, os tons da terra e do céu dourados pelo pôr-do-sol, o silêncio pontuado pelo bater de asas dos pássaros. Após uma lomba, o horizonte revela um ecrã gigante psicadélico. É a festa novamente. O ruído de Agosto entra pelas janelas quando o carro passa ao lado do imenso palco, em cima do qual três acordeonistas tocam para um adro despovoado de assistência. As colunas reverberam um som distorcido que trepida os assentos do automóvel. E esta transição que parece ser do paraíso para o inferno, afinal não é mais do que a revelação de que as fronteiras são artificiais, de que o silêncio está ligado ao ruído, de que o catedrático come a mesma comida do que o analfabeto, de que somos todos o mesmo país, de que formamos uma unidade resistente aos preconceitos e aos ares de superioridade.
“Dizem que Raimundo conhecia muito mundo.” Não sei ao certo por onde andará o Raimundo. Mas seja lá onde for que ele esteja, eu também quero estar.

Paulo M. Morais

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