“No Heilongo a Ercília não pára de perguntar, alguma vez viste o mar?
«É assim, o mar tem telhas de zinco azul transparente e paredes de nuvens. Os peixes têm camisas prateadas e casacos de lapelas douradas. Os lagartos jardineiros alisam a areia para que nas águas dancem flores de sal colorido.»
(As histórias que ela me obriga a inventar.)
«Viste onde, o mar?»
«Vi no rio Sulo, onde é que havia de ser?»
Ali o mar é mesmo grande. A água tem sabor a esponja ácida de frutos do mato que crescem nas margens. O corpo afunda-se em verde. Saltam fragrâncias de erva-sabão.
A mãe Geraldina dizia que os brancos escrevem nos livros e nós, os de Quelingeli, escrevemos no peito. Deixa ver se me lembro.
Faz muito tempo. Era muito cedo. Acerquei-me das margens do rio e afastei as plantas. Fiquei à espera de que os insectos de asas grandes notassem a minha presença.
(Dá licença?) A respiração contida. Um suspiro. (Pode entrar.)
Saltaram em torvelinho milhares de aranhas brancas num sapateado transparente. Uma névoa de fumo agitou a superfície da água. A mãe Geraldina vestia o seu melhor pano, o da vegetação em profusão. Agora o meu vestido era, como posso explicar?
Naquele tempo não tinha palavras. Os bichos passavam, abelha, percevejo, mosquito, gafanhoto, tudo a voar (já ali está!), olhava, zonza de tanto ver, brincava na lama, gafanhoto, mosquito, mosca passava, abanava a cabeça daqui para lá e seguia o voo (já foi lá!).
O chão de terra vermelha. Fazia cabelos de lama com os dedos.
Espalhava nos braços e no próprio vestido. O que quero dizer é que esse vestido vinha desde há muito tempo. Custava a entrar na cabeça. Apertava no peito. Era curto na manga, mas era o meu único vestido de ocasião.
A mãe esfregou-me com ervas que crescem à beira do rio. Mergulhou-me na água, desatou o pano e enxugou-me dos arrepios de frio. Faltava ainda amanhecer. Tudo era orvalho e gotas no dia em que a mãe me entregou ao meu pai no Heilongo.
Entrámos na primeira loja da povoação. Os meus olhos nas flores do vestido.
«Levanta a cabeça. Tem o quê aí, no chão?»
Esta é a minha mãe a falar, ela é assim. Não gosta de hesitação. Trazia maçarocas de milho e uma galinha para oferecer. O pai, nem bom-dia, nem boa-tarde. Eu também não disse nada. A Deodata beijou-me na cara. O Justino, que é o meu outro irmão, estava fora em Sá da Bandeira. A Ercília perguntou, tu na sanzala comias o quê?
«Gafanhoto, mosca, larva e macaco, mas comia rato, lagarto e cobra também.»
Coloquei dois dedos na garganta e fingi que engolia um bicho comprido.
«Glup.»
Inventar é fácil. (Difícil é escrever com as palavras do peito.)
Esta minha irmã é muito criança. Acredita tudo. Agora, que estava entregue, a mãe despediu-se e falou, o senhor seu pai vai ensinar a filha a escrever. Então um dia escreve uma carta que começa assim, eu, Belmira, mando cumprimentos para o meu avô Chingandji, o meu irmão João Sotomaior Guerra e para a minha mãe Geraldina, lá no Quelingeli, prometes?”
Ficha Técnica:
Título: Os Pretos de Pousaflores
Autora: Aida Gomes
Editora: Publicações Dom Quixote
Edição: Maria do Rosário Pedreira
Fotografia da capa: Yoram Diamand
Paginação: Joaquim Santos
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