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Os Laços Que nos Unem de Linda Gillard (Europa-América)

“Capítulo Um

Uma mulher sozinha numa sala branca e luminosa. Um forno incandescente, uma gasta mesa de pinho. Não se vêem espelhos, relógios nem fotografias. Uma caixa de costura está aberta no soalho de madeira. Num peitoril, uma natureza-morta: destroços arrastados pela maré, conchas e o crânio de uma ovelha. A mulher — nem velha nem nova — pousa a caneta e mexe-se na cadeira. O rangido da madeira quebra o silêncio. Ela dobra cuidadosamente folhas de papel e as suas mãos ligeiramente trémulas guardam-nas num envelope.

 GrenitoteNorte de UistIlhas ocidentais

11 de Janeiro de 2000

 

Minha querida Megan,

 

Os dias são muito curtos e escuros e o vento é quase constante. A minha casa nova (a minha casa de bonecas!) é pequena mas gosto dela assim. (Para começar, há pouco para limpar.) Tenho uma sala de estar e um escritório no rés-do-chão, uma cozinha minúscula com vista para as traseiras, um quarto e uma casa de banho no primeiro andar. Tudo é de uma simplicidade monástica. Vejo o mar da sala de estar e do meu quarto. Quem compra casas de férias na ilha não quis esta porque está demasiado perto do mar, pelo menos é o que diz a minha vizinha Shona McAskill. (A minha querida Shona é uma fonte de sabedoria e de muitos provérbios gaélicos pouco recomendáveis. Parece haver um para todas as ocasiões e todos são deprimentes.) Consta que, se a maré subir inesperadamente, a água vai dar-me pelos tornozelos nesta casa, por isso, não me dei ao trabalho de arranjar uma carpete. O soalho de madeira está despido e cobri os móveis com colchas velhas e desbotadas para esconder as cores que agora me parecem berrantes e que herdei da minha vida anterior. (Agrada-me a ideia de ter uma Vida Anterior. Dá-me um ar misterioso e romântico, não achas? Ou pareço alguém que esteve na cadeia? Talvez fosse boa ideia dizer aos moradores da ilha que vim até cá para me emendar. De certa forma, até é verdade.) 

Esforço-me por dar um passeio todos os dias, mesmo quando o tempo está mau. Ou seja, desde que o vento não me derrube. Não me cruzo com muita gente nestes passeios. Não há turistas nesta época do ano e os sensatos habitantes ficam à lareira e vêem televisão durante o dia. (Não posso fazer o mesmo porque não tenho televisão.) O rádio tem sido o meu fiel companheiro e o boletim meteorológico para a navegação adquiriu um novo significado. Não vou fingir que o compreendo mas já percebo algumas coisas. Os prognósticos para «Mallin, Hébridas e Minches» parecem sempre vagos mas terríveis. (Tal como os provérbios da Shona.)

Hoje caminhei muito depressa para aquecer, depois sentei-me nas rochas e chorei quando vi os gansos-patolas a mergulhar. Sempre que vejo gansos-patolas não consigo deixar de pensar que ficam cegos na velhice e morrem de fome. Embatem na água só Deus sabe a que velocidade, com os olhos abertos, em busca de alimento. Como é que os olhos resistem ao impacto? E como é que os ornitólogos sabem que os gansos-patolas fecham furtivamente os olhos no último instante? (Talvez os gansos-patolas não tenham pálpebras. Vou perguntar à Shona. Tenho a certeza de que ela sabe.)

O silêncio e os longos momentos sem interrupções são divinais. Quando Deus criou o tempo, fê-lo em abundância.» O Evangelho segundo Shona.) Creio que já estão a afectar o meu trabalho. Tenho a impressão de que uso menos cor e mais textura e, quando uso cores, tendem a ser tons da natureza. Creio que este lugar será bom para o meu trabalho e para mim. Assim espero.

Exceptuando o facto de terem tornado bem claro que pensam que sou a) louca e que b) é pouco provável que aguente seis meses, os habitantes são a gentileza personificada. Estou certa de que consideram que é o seu dever de cristãos, embora duvide que o dever os impeça de repetir (e, provavelmente, romancear) todas as informações pessoais que sou suficientemente doida para deixar escapar. Mas não me importo. Não vim até cá a contar com privacidade. Tenho consciência de que sou uma novidade. Numa ilha das Hébridas praticamente desabitada passo por diversão. Causo estranheza. Sou uma mulher solitária, demasiado jovem para ser viúva mas velha para andar à procura de um companheiro. Moro num limbo entre a juventude e a velhice.

Não te esqueças de escrever, minha querida, ou telefona se puderes. Não me sinto só mas gostava muito de ter notícias tuas.

Beijos,

Mãe

P.S. Estou a aguentar-me. Não tive pesadelos e até agora não aumentei a dosagem. Não te preocupes comigo!

Soltando um suspiro, ela fecha o envelope e pega de novo na caneta. Olhando fixamente para o espaço branco e vazio, as suas memórias confundem-se e parecem escolher outro espaço igual. A caneta fica suspensa no ar, escrevinha um nome e depois desliza no envelope. Ela admite a derrota, põe a tampa na caneta e vai até à janela, onde encosta a cabeça ao vidro frio.”

 

Ficha Técnica:

Título: Os Laços Que nos Unem

Autora: Linda Gillard

Título original: Emotional Geology

Tradução: Maria Teresa Pinto Pereira

Colecção: Contemporânea

Preço: 20.51€

Pp.: 240

Formato: 15,5 cm x 23 cm

ISBN: 978-972-1-06088-3

Data de edição: Maio de 2010

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