“NÃO FIQUEI SURPREENDIDA quando a mamã me pediu para lhe salvar a vida. Desde a minha primeira semana no infantário, tinha percebido que ela não era o género de mãe que usa colares de macarrão. Basicamente, a mamã considerava-me como uma criada prestável em miniatura.
Vai buscar-me uma Pepsi, Lulu.
Traz-me o leite para os cereais da tua irmã.
Vai à loja comprar-me um maço de Winston.
Até que um dia subiu a parada:
Não deixes o pai entrar em casa.
No mês de Julho em que a nossa família se desintegrou, a minha irmã estava a caminho dos 6 anos e eu estava prestes a fazer 10, o que, aos olhos da minha mãe, eram cerca de 50. O papá não ajudava grande coisa, mesmo antes de se ir embora. Tinha os seus problemas. O meu pai queria coisas que não podia ter e, acima de tudo, desejava ardentemente a minha mãe. Talvez o facto de ter crescido à sombra de Coney Island, o mundo de fantasia de Brooklyn, explicasse a fraqueza dele pela fachada pinup da mamã, mas eu nunca compreendi como era possível ele sentir a falta do resto. A cobertura açucarada dela deve tê-lo impedido de reparar como ela suportava mal qualquer momento que não lhe pertencesse completamente.
As batalhas da mamã e do papá eram o pulsar da nossa casa. Mas ainda assim, até ao dia em que a minha mãe o pôs na rua, o meu pai era o exemplo acabado da esperança contra a experiência. Regressava do trabalho todas as noites à espera do jantar, de um beijo de boas-vindas, de uma cerveja fresca, mas a mamã considerava o seu regresso a casa como o sinal para começar a rabujar contra a vida.
— Quantas horas por dia achas que consigo passar sozinha com elas, Joey? — perguntara a mamã poucos dias antes de ele sair de casa. Apontara para a minha irmã e para mim a jogar Serpentes e Escadas
na minúscula mesa de fórmica entalada no canto da reduzida cozinha. Éramos as meninas mais bem-comportadas de Brooklyn, meninas que sabiam que desobedecer à mamã valia uma palmada brusca e horas passadas a olhar para os dedos dos pés.
— Sozinha? — Os lábios do papá exalavam cerveja. — Poramor de Deus, passas metade do dia na cavaqueira com a Teenie e a outra metade a pintar as unhas. Sabes que temos um fogão? Com botões e tudo o mais? Teenie, a amiga da mamã vivia em baixo, no primeiro andar, com cinco filhos e um marido demoníaco, cuja cabeça gigante parecia uma bigorna. O apartamento de Teenie cheirava a lixívia e a roupa acabada de engomar. Engomar era o Valium de Teenie. As explosões do marido deixavam-na tão ansiosa que implorava à mamã que a deixasse passar a ferro a roupa amarrotada da nossa família. Graças ao marido de Teenie, dormíamos em lençóis impecavelmente engomados e em fronhas suaves como cetim.
Eu sonhava com a libertação da minha pretensa família, convencida de que era a filha secreta do nosso formoso Mayor, John V. Lindsay, que parecia tão esperto, e da sua doce e requintada mulher, que eu sabia ser o género de mãe que me compraria livros, em vez de Barbies falsas de má qualidade da secção de brinquedos assucatados da Woolworth. A família Lindsay pusera-me naquele apartamento feio, com a
tinta a estalar e pais de terceira categoria, para testar a minha virtude, e eu não iria desiludi-los. Mesmo quando a mamã me gritava na cara, eu mantinha a voz regulada num tom destinado a agradar a Mrs. Lindsay.
Naquela tarde, a mamã mandou-nos dormir uma sesta. O pequeno quarto do tamanho de um caixão que Merry e eu partilhávamos estava quente, quente, quente. O único alívio era quando a mamã nos esfregava o peito e os braços encardidos com uma toalha de rosto que ensopava em álcool e água fria. Deitada no calor da tarde, esperando impacientemente a chegada do meu aniversário, no dia seguinte, rezei para que a mamã tivesse comprado o conjunto de química que durante todo o mês eu dera a entender que queria. No ano anterior, pedira uma enciclopédia britânica e recebera uma boneca que chorava. Nunca desejara ter uma boneca e, mesmo que tivesse desejado, quem queria uma boneca que nos fazia chichi em cima?
Esperei que a disposição recentemente melhorada da mamã pudesse jogar a meu favor. Desde que pusera o papá na rua, já quase não gritava connosco. Quase não dava pela nossa existência. Quando lhe recordava de que eram horas de jantar, levantava os olhos da revista de cinema e dizia:
— Tirem dinheiro da minha carteira e vão ao Harry’s. Nós percorríamos três quarteirões até à cafetaria Harry’s e pedíamos sanduíches de atum e batidos, de baunilha para Merry e de chocolate para mim. Normalmente eu terminava primeiro, enrolava as pernas à volta do suporte cromado frio que sustentava o banco de couro, e girava com impaciência enquanto esperava. Merry dava pequenos tragos no batido e minúsculas dentadinhas na sanduíche. Eu gritava-lhe que se despachasse, imitando a avó Zelda, a mãe do papá.”
Ficha Técnica:
Autor: Randy Susan Meyers
Título: As Filhas do Assassino
Título original: The Murderer’s Daughters
© Randy Susan Meyers, 2009, publicado originalmente por St. Martin’s Press
1.ª edição: Junho de 2010
Tradução: Cláudia Brito
Revisão: Sandra Pereira
Capa: Editorial Bizâncio sobre fotografia de Svetlana Bekyarova
Composição e paginação: Editorial Bizâncio
Impressão e acabamento: Rolo e Filhos II, S. A. — Indústrias Gráficas
Depósito legal n.º 312 446/10
ISBN: 978-972-53-0457-0
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