Estou zangada. Queria ser tradutora literária, adoro o meu trabalho, quando estou a traduzir passo a habitar num outro universo, o do livro no qual mergulhei, o do processo mental de construção desse universo na língua do meu país (por mais que queiram, nunca na vida hei-de escrever espetador em vez de espectador! – Ah! Este parêntesis é mesmo grande: talvez tenha de deixar de escrever nessa língua, quando o meu país deixar de existir ou deixar de ter sobreviventes). Mas, como estava a dizer, crio esse universo, um processo fascinante, umas vezes delicioso, outras doloroso – em suma, traduzo literalmente (isto aplica-se obviamente à expressão e não à forma como traduzo, cruzes canhoto!) com o coração nas mãos, na ponta dos dedos, com o coração tão agarrado ao cérebro, e o cérebro aos dedos, que toda a família se queixa de que eu mudo de feitio consoante o livro que estou a traduzir. Claro que isto não é razão para estar zangada. Mas passar dois meses (em teoria, e já explico porquê) a fazer isto e depois esperar um ou dois meses porque o contrato estipula um pagamento a 30 ou 60 dias e, a seguir passar dois, três meses, um ano, um ano e meio (!!!!) a telefonar a sugerir que me paguem, a dizer que gostaria que me pagassem, a pedir que me paguem, a implorar que me paguem, a diminuir a quantidade de cafés que bebo por dia, a ir ao Minipreço em vez de ir ao Continente ou a ficar com dívidas ao fisco – isto, reconheçam, já é razão para ficar zangada.
Esta história não é só minha, é de certeza de quem tem a veleidade de querer ser tradutor literário. E, então, lá vem um laboratoriozinho farmacêutico ou um contratozinho intragável salvar a pele do tal tradutor utópico. E essas traduçõezinhas – que acabam por lhe dar de comer – fazem atrasar as tais traduções que ele gosta de fazer.
É um filme, não é?
É a crise? Ou é o aproveitamento da crise para ficar a dever? Se não pagam, é porque não vendem livros e, se não vendem livros, como é que publicam tanto, tanto, tanto?
Sabem o que é que eu acho? Que mais dia menos dia vou mesmo ficar sem país. R.I.P.
Maria do Carmo Figueira
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