Uma das questões que mais se coloca quando se pensa em poesia e música é da diferenciação entre o que é uma letra de canção e um poema. Uma visão simplista diz que aquilo que foi escrito para uso numa melodia já previamente existente é uma letra, aquilo que foi escrito autonomamente e depois musicado é um poema. Esta visão é isso mesmo: simplista. Primeiro argumento contra: e quando se não sabe o que foi feito primeiro, quando são ambas as coisas feitas sem simultâneo? Atira-se a moeda ao ar? (Ver por favor o filme, imperdível “Musica & Lyrics” com Hugh Grant como, digamos, Andrew Ridgeley – não sabe quem é? Exactamente.) Para além de que os exemplos que fazem desta possível regra um disparate são mais do que muitos. Quantos grandes poemas deram grandes letras de canções porque foram fantasticamente musicados? Quantas grandes letras de canções são grandes poemas, com ou sem melodia que as limite mas foram escritas propositadamente para uma música? Quantos poemas pouco brilhantes se tornaram outra coisa porque musicados? E claro, quantas letras não são mais do que letras e nunca na vida poderiam sonhar vir a ser consideradas poemas?
Pensemos: “Pedra Filosofal” de António Gedeão e “Ser Poeta” de Florbela Espanca. Dois poemas interessantes, é certo, mas longe de serem brilhantes. Mas não ganharam um novo sentido como letra de canção? Não existem bem mais na nossa memória na voz de Manuel Freire e Luís Represas, respectivamente? Dois exemplos de poemas que se realizam bem mais na voz de um cantor do que no texto. “Senta-te Aí” do João Monge (cantada pelo Jorge Palma nos Rio Grande) e “Voar como Jardel” de Carlos Tê (para o seu de sempre Rui Veloso). (Podem dizer-me, concedo: não compares dois poemas de recorte clássico (um mais do que outro, é certo) com duas letras muito contemporâneas. Não comparo os méritos absolutos de cada texto, apenas os uso como exemplos. Mas podia comparar. Porque nós somos o nosso tempo e eu gosto de ser o tempo que somos.) “Senta-te Aí” e “Voar como o Jardel”, dizia. Não serão grandes poemas mesmo sem qualquer música com eles? “Tu querias perceber os pássaros / Voar como o Jardel sobre os centrais. / Saber porque dão seda os casulos / Mas isso já eram sonhos a mais”; “Está na hora de ouvires o teu pai / Chega para aqui essa cadeira / Cada um é que sabe aonde vai / Hora a hora e durante a vida inteira.” É certo que o Jardel já não voa sobre os centrais – o peso não deixa. Mas em absoluto, não são textos lindíssimos? São. E foram escritos para serem musicados, ou escritos sobre melodia (no caso do Tê com toda a certeza a segunda hipótese, que é assim que ele trabalha). E não é por isso que deixam de ser bons poemas.
Um exemplo acabado desta não distinção é o poeta Antonio Cicero, que tive a honra de editar nas Quasi. No seu primeiro livro de poemas (“Guardar”) já publicado com mais de cinquenta anos de idade, coloca poemas que foram escritos para letras de canções – principalmente para Adriana Calcanhotto. Um exemplo: “Inverno”. Como exemplo acabado de que esta distinção não deve existir e de que o que verdadeiramente importa é o texto, deixo-o aqui, seguido de outro, já mais antigo, e que ele não recuperou para nenhum livro (e as razões porque não). São dois grandes poemas.
Inverno
No dia em que fui mais feliz
Eu vi um avião
Se espelhar no seu olhar até sumir
De lá pra cá não sei
Caminho ao longo do canal
Faço longas cartas pra ninguém
E o inverno no Leblon é quase glacial
Há algo que jamais se esclareceu
Onde foi exatamente que larguei
Naquele dia mesmo
O leão que sempre cavalguei
Lá mesmo esqueci que o destino
Sempre me quis só
No deserto sem saudade, sem remorso só
Sem amarras, barco embriagado ao mar
Não sei o que em mim
Só quer me lembrar
Que um dia o céu reuniu-se à terra um instante por nós dois
Pouco antes de o ocidente se assombrar
O Último Romântico
Faltava abandonar a velha escola
Tomar o mundo feito coca-cola
Fazer da minha vida sempre
O meu passeio público
E ao mesmo tempo fazer dela
O meu caminho só
Único.
Talvez eu seja
O último romântico
Dos litorais
Desse Oceano Atlântico…
Só falta reunir
A zona norte à zona sul
Iluminar a vida
Já que a morte cai do azul…
Só falta te querer
Te ganhar e te perder
Falta eu acordar
Ser gente grande
Prá poder chorar…
Me dá um beijo, então
Aperta a minha mão
Tolice é viver a vida
Assim, sem aventura…
Deixa ser
Pelo coração
Se é loucura então
Melhor não ter razão…
(Um doce para quem disser qual o cantor que celebrizou a segunda. E some inside information: Cicero nunca a colocou em poema algum porque o crédito é – diz esse mesmo cantor, erradamente – dado a outro colaborador também.)
Quem foi alguma vez ao Rio de Janeiro, sabe da utopia que é “reunir a zona norte à zona sul”. E da loucura de dizer que “o inverno no Leblon é quase glacial”. Perguntei-lhe, um dia, se tinha sido figura de estilo, de tão mentira. Cicero riu como só ele sabe rir e retorquiu: “Mas é que é mesmo!”
Jorge Reis-Sá
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