«Os Malaquias», de Andréa del Fuego, Língua Geral
É a mais recente vencedora (e surpresa) do Prémio Literário José Saramago. Nasceu em 1975, em São Paulo, Brasil, e é, entre nós, uma ilustre desconhecida. Ou era; até ser distinguida com o Prémio. O que não deixou ainda foi de estar por publicar entre nós. Assim, lemos o seu livro premiado, «Os Malaquias», no «original», leia-se em português do Brasil – não deixa, de resto, e aqui como aparte, ser curioso verificar como nenhum acordo ortográfico será capaz de elidir a distância que separa uma e outra língua escritas, o que, vistas as coisas, só abona em desfavor do malfadado acordo… Adiante, a’«Os Malaquias». Trata-se de um romance que se lê de uma assentada e que começa por prender o leitor por via do episódio singular que catapulta o restante enredo e suas personagens. Ou seja, o facto de um raio, durante uma tempestade, ter esturricado um casal, na cama do seu quarto, deixando órfãos os seus três filhos. Não levarão a mal o termo utilizado, assim mesmo a autora o emprega a páginas tantas: «… os pais foram esturricados, caiu trovão…» Ou, de outro modo, como vem a afiançar à sua futura noiva um dos filhos sobrevivo, Nico: «Morreram de raio.» Para resumir o caso, mais bonita é a transcrição que refere a morte de Donana e Adolfo ter resultado da fusão de carne e luz. Pois bem, no vale de Serra Morena retenhamos esse trágico acontecimento que certa noite levou um gato a esticar as pernas e as paredes a se retesarem. É este o facto-ignição de todas as estórias consequentes, e por aí se prende o leitor ao correr das páginas, dos pequenos capítulos que às nossas mãos se evaporam.
Mas o que nos prende à leitura? As andanças e desventuras dos três filhos órfãos, António, Nico e Júlia? Também, também, uma vez que não deixa de ser com curiosidade que vamos seguindo os destinos que o destino como partida pregou aos três irmãos. Júlia e António são entregues a um lar de freiras francesas. Logo, logo são separados, quando uma tal de Leila aceita tomar para ajuda caseira a jovem Júlia. António chora, de nada lhe vale. Tornar-se-á o filho do orfanato; destino mais ingrato ainda, pois o doutor Calixto, chamado a modos de urgência, confirma o seu estado singular e inédito na família: António é anão. Por ali crescerá, diferente dos outros meninos: terminadas as tarefas da cozinha, «subia para os quartos das irmãs e abria um gavetão pesado! De pé afundava o rosto nas calcinhas das freiras…» Júlia virá a casar com Messias e a boa nova que o casal fecundará terá idêntico e mísero desenlace: têm um filho anão. Quanto a Nico, o irmão mais velho, que ficara a trabalhar para um fazendeiro vizinho dos seus pais, crescendo com eles, segue um curso mais normal de vida: apaixonar-se-á por Maria e o casamento tem lugar com direito a dois rebentos futuros. Pelo meio destas três vidas, pequenos grandes acasos colaterais, entre os quais um com maior alcance e consequências, o anúncio da vinda para o Vale de Serra Morena de uma hidroeléctrica que, claro está, ira inundar as vidas de todos os seus habitantes.
À margem de todas estas peripécias, diria que aquilo que mais nos prende ao texto é o seu lado formal. Andréa del Fuego (pseudónimo de Andréa dos Santos, que resulta de uma homenagem a uma bailarina naturalista brasileira, Luz del Fuego, que dançava semi-nua, dominando uma cobra pseudónimo) escreve como quem poetiza. Ou seja, cada frase poderia quase ser transformada num poema, e é justamente essa beleza formal, estética, que conferem à sua escrita uma grande musicalidade. Temos pois que a autora não está apenas interessada nos factos e no enredo, antes assume a escrita e a palavra como um objecto criativo, como peça artística. Daí resulta, por decorrência, um engrandecimento da humanidade das suas personagens que facilmente se inscreve, como marca impressiva, no leitor, que assim comunga das suas misérias ou alegrias. Assim, em medida breve, mas prenhe de emoções, avança a narrativa que tem ainda o condão de nos transportar para aquela que imaginamos uma realidade rural de Brasil hoje essencialmente virado para o grande mediatismo urbano. Andréa del Fuego estreou-se literariamente em 2004 com a antologia de contos “Minto Enquanto Posso”, a que se seguiram «Nego Tudo» e «Engano Seu». Com formação em Publicidade, fez também produção de cinema, realizando duas curtas-metragens, “Morro da Garça”, inspirada no universo de Guimarães Rosa, e “O Beijo e Ela”.
«O Ouro dos Corcundas», de Paulo Moreiras, Casa das Letras
O romance histórico, penso ser matéria de pouca celeuma, é hoje um dos géneros literários mais apreciados pelo leitor comum, passageiro mais ou menos em trânsito frequente pelas livrarias. Basta, de resto, entrar numa delas para verificar como, às primeiras estantes, se acotovelam títulos e títulos nesta área. Para além do interesse que possam suscitar desasadas vidas de reis e rainhas – personagens garantes de grande percentagem de êxito que tais empreitadas editoriais possam recolher –, talvez um outro facto que explique um tal apreço e adesão do público seja a pobre realidade (e pobres actores?) que hoje conhecemos, vivemos, respiramos. A ficção é viagem, bem certo e sabido, e, ao que parece, para quanto mais longe, no espaço e no tempo, melhor! No mais, a este respeito, outras questões acrescem e sempre se colocam; sobretudo o saber-se onde começa ou acaba um romance dito histórico. Ademais, não é história (que logo passa ao domínio do histórico) cada dia que vivemos? Naturalmente que sim, que a história de hoje será parte do histórico amanhã. Tenha-se, porém, que seja (adopte-se como premissa) histórico o romance cujo tempo de vida das personagens seja já havido. Isto, tão-só, para que haja algum tipo de compartimentação, mais não seja para hipotética elucidação de fronteiras. Mas a que propósito estas delongas… A propósito de Paulo Moreiras e do seu mais recente romance, «O Ouro dos Corcundas», romance que, a valer de alguma coisa esta última premissa, cai que nem luva no domínio do romance histórico. Ou seja, é para o passado que vamos.
E vamos, primeiro ponto, desde já afirmar ser este um belo livro. Dizê-lo ou afirmá-lo, contudo, é coisa de somenos, restará saber porquê. O que me parece, após a sua leitura, aquilo que me transpareceu, é o deleite e gozo tremendo, do acto de escrita, que acode ao autor. Que são de toada pícara e aventureira os romances de Paulo Moreiras já o sabemos, e aqui o mesmo dado se atira ao branco das páginas. O que parece é que neste romance se apura o lance dos dados. Mais do que em qualquer outro seu livro, Paulo Moreiras maneja o tempo e os espaços em que as personagens se movem com imenso à-vontade. Do mesmo modo, exemplar é a gestão da narrativa e dos seus quadros, das pequenas estórias dentro da história, mais parecendo o escritor um estratega ou exímio jogador de xadrez na exposição dos factos narrativos. Em suma, o encadeamento e ritmo da história é notável. No mais, o que torna este romance um livro de muito fácil e apetecível leitura? Por um lado, o desenho das personagens, vivas, vibráteis, humanas, reais, fidedignas, por outro, o modo como a escrita se tempera, do princípio ao fim, com um invejável domínio e conhecimento de ditos e anexins, adágios ou rifões, provérbios e quejandos, a que acresce uma riqueza vocabular de se lhe tirar o chapéu. Claro está que há ainda a referir algo que de sempre Paulo Moreiras incute aos seus romances, ou seja, inúmeras referências gastronómicas (no caso ao tempero de época), no que é um caso assaz singular e muito interessante no actual panorama da ficção portuguesa.
Quanto à intriga, tudo começa com o regresso a casa de um bandoleiro de província preso e libertado em Lisboa às mãos das tropas liberais de D. Pedro investindo contra as hostes miguelistas. Vicente Maria soube da morte do pai e retorna a casa disposto a encarreirar a sua vida, de preferência com o amor da sua vida, a puta Tomásia. Sucede que o passado é cão que não larga o osso do herói e galã e tudo parece correr-lhe a desfavor. Assim dita o destino sua Lei maior pelo que a resposta terá de surgir à altura: juntando-se a um bando de malfeitores Vicente tenta o último golpe, na verdade uma golpada, o assalto a uma carruagem de nobres em trânsito para a província. Sai-lhe o tiro pela culatra e acabam por roubar o tesouro do Reino. Está o caldo entornado e Vicente Maria acaba por escaldar-se. Ou quase… Resumindo: romance histórico ou não histórico, pouco interessa, interessa que «O Ouro dos Corcundas» é livro merecedor de entrar para a história das leituras a recomendar. Mais não fosse pelo modo como facilmente nos faz reencontrar com o prazer da leitura, sem se esquecer de devidamente nos contextualizar quanto ao tempo histórico da acção.
«O Retorno», de Dulce Maria Cardoso, Tinta da China
O Retorno» é o quarto romance de Dulce Maria Cardoso. Galardoada com diversas distinções literárias – entre as quais o Prémio da União Europeia para a Literatura, pelo livro «Os Meus Sentimentos», ou o Prémio Literário Acontece, atribuído a «Campo de Sangue» -, terá sido a descoberta da autora fora de portas a merecer-lhe o convite para uma residência literária que a levou a viver um ano na Alemanha. Foi aí que escreveu o romance que agora a catapultou para o primeiro plano da Imprensa portuguesa, meio em que o seu reconhecimento tem sido gradual. Para além de um romance que, como diz a escritora, a levou a decidir tornar-se escritora, este será também, ou é, de certa forma, um romance que abre uma porta até hoje fechada, a do olhar de uma geração sobre um tempo português de miséria, vergonha e turbação.
Nascida em 1964, Dulce encarna a geração dos filhos da guerra, os filhos dos homens que combateram em África por uma terra que diziam ser nossa, do Minho até Timor, os filhos daqueles que tendo começado uma vida em África se viram engolidos pelo rolo compressor da História que os levou a deixar uma terra que tinham como sua, que amavam como sua, que queriam como sua, regressando de mãos vazias a uma metrópole que mais do que os acolher, os recebeu como pôde, mal e vergonhosamente. Como aliás, o país se encarregaria de tratar também aqueles que lutaram por uma ideia de nação ultramarina gasta e condenada ao fracasso que os anos, e as muitas vítimas de um conflito perdido à nascença, se encarregariam de demonstrar.
Aqui, porém, é dos retornados que se fala. Pela voz de uma criança, depois adolescente, que aprende a vida passando pela descoberta precoce do medo, da humilhação, da discriminação. Romance a dois tempos, dividido entre um lá e um cá, um antes e depois do regresso, o que aqui nos é dado a perceber é o modo cinzento como então se via o mundo, de um lado, os bons, do outro, os maus; isto é, um mundo visto com a inocência de um olhar daltónico, que mais não sabia distinguir que apenas o branco e o preto.
Livro testemunho, é nessa medida um livro empenhado em instituir-se como testemunha de um tempo e de um processo que o tempo não apagou ainda por completo, tão-só porque as memórias e as emoções não se apagam por deliberação, tão-só porque se trata de um tempo, ou de tempos conturbados, que muita gente parece não interessada em escalpelizar – por vergonha? Porque passou, passou? Ou porque exactamente não passou? Dulce Maria Cardoso nasceu em Trás-os-Montes, em 1964. Para além dos romances supracitados editou ainda «O Chão dos Pardais» e o livro de contos «Até Nós». «O Retorno» tem edição, digna e de bom gosto, da Tinta da China. Porque a literatura é a maior arma contra o esquecimento, «O Retorno» é um livro a não deixar passar em branco. Tal como por vezes alguns insistem a fazer com certos momentos da História…
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