Valter Hugo Mãe
«O Filho de Mil Homens»
Alfaguara
Valter Hugo Mãe está de regresso ao romance, género a que parece agora devotar-se a cem por cento, ele que começou pela poesia, que debutou na escrita a querer fazer-se poeta. Pois bem, é o romance que mais reconhecimento lhe tem granjeado, sobretudo desde a distinção com o Prémio Saramago, sobretudo, diria, depois de «A Máquina de Fazer Espanhóis». Agora, o livro é outro, «O Filho de Mil Homens», a temática geral não se afasta muito do que vêm sendo as suas preocupações enquanto escritor atento ao mundo à sua volta. Uma vez mais, são as margens da sociedade que lhe interessa reflectir, as margens e os seus «marginais», leia-se os mais desfavorecidos, os excluídos, os ostracizados, os desprezados, os esquecidos. As minorias, tenha-se, tendo em mente que muitas minorias fazem a maioria, como o escritor, em moldes similares, terá expressado.
De escrita e leitura escorreita, a golfadas de capítulos que quase per si encerram múltiplos contos, sempre numa toada declaradamente poética, sempre com bastante musicalidade, este romance lê-se de uma assentada, ganhando-nos rapidamente pelos personagens que o habitam. Personagens do lado do coração, por dentro do sangue e da carne, personagens palpáveis, cheias de vida e sentimento. Personagens também frágeis mas que se tornam grandes pelo avançar nos dias difíceis – os livros de Valter Hugo Mãe estão cheios desta gente heróica que se faz grande na sua aparente pequenez. Aqui há o pescador Crisóstomo cuja alma «incompleta» lhe pesa fundo por não ter um filho na dobra dos quarenta anos, há o Antonino maricas que parece não encaixar na vida e no seu pequeno mundo, há o Camilo filho de uma anã com «voz de passarinho» que morre ao dar à luz, há a Isaura, senhora de todas as dores e precipícios, há Matilde, mãe de Antonino, o rapaz coisa que se calhar houvera melhor ser virado a varapau para se virava homem como os homens e não como esses que um dia ainda hão-de ter filhos pelo cu.
São, como se adivinha, páginas impregnadas de muitas emoções, sentimentos cruzados que destilam muito do que atravessa ainda a mentalidade portuguesa, aqui retrógrada, ali inquisidora, ao fundo discriminatória, e nisso este livro é muito acusatório, mesmo que tudo nos soe a um sorriso nos lábios – que não passa, contudo, de um ácido e subterrâneo apontar. Mas há também um outro lado, o lado da felicidade, aquele que Valter procura nos interstícios da podridão e da desdita, a felicidade que o escritor decidiu haveria de conceder ao seu Crisóstomo. Nada mais nada menos que pôr-lhe um filho ao caminho, não como pedra, antes como dádiva. Dádiva, é disso que se trata, porque a literatura deve ser lugar de todas as esperanças, lugar de conserto do desconcerto do mundo, lugar de ajuste, de justiça, mesmo que fictícia, mesmo que ficcional. Porque se em alguma coisa podemos ainda acreditar é na capacidade redentora dos livros, e este livro parece apostado em gritá-lo.
José Eduardo Agualusa
«A Educação Sentimental dos Pássaros»
D. Quixote
São contos, senhores, são contos, e muitas histórias contadas. Histórias com estórias dentro. Histórias com pessoas, com anjos, com demónios. Histórias de um tempo ontem, de um tempo hoje, de um tempo sem tempo. Histórias que partem da realidade para subvertê-la, permitindo ao autor dizer-se «nas tintas para a realidade». Há realidades que chocam, que ferem, que matem, que são feias, realidades a preto e branco, sem cor, com os ditadores gostam ao ponto de proibirem arco-íris. Em «A Educação Sentimental dos Pássaros» (belíssimo título) há, sobretudo, histórias, histórias muito bem escritas, muito bem, se se quiser, congeminadas. Histórias com estórias dentro, estórias de ver, andar e contar, resultado de vivências autorais muitas, no triângulo-mapa que lhe é reconhecido: Angola, Brasil, Portugal.
Uma vez mais, José Eduardo Agualusa respiga nesta colectânea de contos, díspares no tempo e nos meios em que foram sendo conhecidas, personagens singulares, cheias de maravilha e encantamento. Um homem chamado Escuridão, um ascensorista outrora engolidor de facas e não só, um homem que à noite se transformava em tubarão-martelo, um pintor que um dia ouviu dentro de si uma porta a ranger-lhe o nome Alá, o filho de um Presidente ditatorial que subterraneamente, via Internet, incita à revolução contra o progenitor, anjos que se recusam a voar sem asas, outros que duvidam das suas asas Made in China, ou ainda, entre outras, uma Hillary ou um Jonas Savimbis, estes, quase motu próprio, por via dos seus destinos, alcandorados à condição de personagens maiores do nosso tempo histórico.
Como se adivinha, por detrás de todas as estórias, fábulas e parábolas (uma dia ainda algum estudante universitário se doutorará com uma «Dissertação em Torno da Importância dos Pássaros na Escrita de JEAgualusa»…), o que se joga em pano de fundo, no entrelinhas e alinhavar dos enredos e ficções, é aquilo que desde sempre tem enfermado a escrita de Agualusa: o Homem. O homem enquanto bicho capaz de amar e de apreciar o belo (as mulheres bonitas surgem sempre ao fim de uma linha nas suas histórias, surpreendentemente vindo amiúde a sentar-se com o autor numa esplanda), o homem enquanto animal capaz do mal e do ódio. É de poder, no fundo, do seu exercício – não raro impune, e em desmandos insuportáveis (vejam-se aqui, por exemplo, as denúncias lembradas das mortes perpetradas a mando de Savimbi, esse «pai dos mortos») –, que aqui se trata e lê.
Mas é também, e por oposição, talvez por veleidade de contraveneno, de um sorriso nos lábios da escrita, ou aos seus pés, que devemos também falar após leitura destes contos. É que Agualusa doseia como poucos o apontar de dedo, a denúncia política (no que sobressai também a sua vertente de escrita jornalística e cronista), com um prazer de escrita (dele e nosso) plasmado numa boa-disposição e humor recorrentes. No fundo, Agualusa é um escritor que olha a realidade do ponto de vista da sabedoria maior, feita de vida e testemunho, aquela que já conhece a máquina-(bicho)-Homem por dentro (o seu «aspecto enganador»…) e sabe que nada há a fazer para obstar à sua animalidade congénita e visceral. Talvez por isso o riso, o riso com última instância, instância de resistência, tal como a crença nas mulheres, na Mulher, tal como, acredito, a crença na escrita e no poder dos livros. Quanto a Deus? – que sim, também entra nestas páginas: ficamos a saber que é brasileiro e que já nada o incomoda – facto em si extremamente incomodativo…
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