Romance? Talvez não. Novela? Não, não. Crónica? Dos dias, eventualmente. Narrativa? Sim, sem dúvida, ou breves narrativas. Ficção? Aqui e ali, uma pitada, embora não o possamos garantir. Diário? Com muito de. A dúvida, feitas as contas e as perguntas, não é senão saber como apelidar este dito em contracapa «romance quase um diário, ou diário quase romance». Venham eleitos, no mais e de resto, estabelecer as diferenças entre os géneros que aqui em pura liberdade de gozo narrativo se fundem e misturam. Aqui, entenda-se, no mais recente livro assinado por Yvette K. Centeno. Quanto a nós, somos pela permanência da dúvida que o texto encerra (ou desvela), tão saboroso e intrigante como o possa parecer o «K.» entre os dois nomes de guerra com que a autora assina. Valha a verdade, e permita-se o parênteses, na história da literatura, poucas letras terão mais sumo literário e história do que um K. Mas isso são outros kinhentos…
«Do Longe e do Perto», que a Sextante edita, é um romance (ou quase…), e quase esquecíamos referi-lo, que recorta em muito igualmente os interesses da autora. Interesses no domínio de estudo, sobretudo aqueles que vão ao encontro das preocupações que Yvette K. Centeno vem expressando, ao longo dos últimos anos, no universo da blogosfera. Em concreto, nos blogs que alimenta: o literaturaearte.blogspot.com, o simbologiaealquimia.blogspot.com e o yvettecenteno-culturavisual.blogspot. Um mundo novo, portanto, cada vez mais do nosso reino quotidiano, na medida em que do espaço etéreo-abstracto da net chega ao velho mundo de papel em forma de livro. É a net a entrar no mundo real enquanto catalisadora de ficções – por mais paradoxal que possa parecer. A própria autora o refere a primeiras páginas, falando o espaço de «livre expressão» que representam os blogues, espaços «onde os outros podem entrar, concordando ou discordando». E também, dir-se-ia, contribuir para o desenhar de uma ideia de romance/ livro. Foi o caso.
E no caso, esses «outros» a que a escritora alude ganham nomes, ganham vida (ou vidas outras), corporizam uma narrativa que ao mesmo tempo que lhes dá vida as “despessoaliza” enquanto personagens – pelo menos aos olhos do leitor que na dúvida fica quanto à sua natureza. Certo é que as histórias, pequenas histórias, dessas personagens ganham relevo no cruzamento com a própria história, estórias, ideias e pensamentos (mesmo vida) da autora. E assim, aos poucos, vamos conhecendo Diotima, Galvão, sobretudo estas, mas também todas as demais, acessórias, que as suas vivências arrastam consigo neste para dentro das palavras escritas. E, claro, a narradora omnisciente, ela própria implicada nas vidas que traz para o papel impresso, com todas as suas perplexidades, questionamentos, afirmações, gostos, afectos, ódios de estimação também, com o seu olhar crítico-afectuoso, aqui, ácida e fulminante, ali, de recorte mais meditativo, filosófico, iniciático.
É, como corolário, um livro desassossegado este, cheio de um quotidiano que nos entra pelos olhos enquanto um real doente e de que Portugal é o todo-reflexo; um só exemplo: «Eu disse que Portugal estava a envelhecer? Portugal está em decomposição, apodrece, a luz que se é a da energia que se escapa e se perde…» País de fingimento, de silêncio, de cobardia, este o retrato impiedoso que a realidade, mais impiedosa, se encarrega de hoje nos gritar. E por aí este livro se revela também enquanto crónica dos dias, na medida em que parece, aqui e ali, ao toque das notícias, inventariar o mal de vivre global dos dias que passam, desde a menção a um golpe de Estado na Tailândia ao enforcamento de Saddam Hussein, desde o Chelsea de Mourinho até às crianças que morrem de fome no Darfur, entre o muito mais que fica na espuma do ver/ testemunhar/ dizer.
E assim a escrita de Yvette Centeno, lembrando, esquecendo, voltando, fugindo, alternando entre a rua e a página, numa espécie de «devaneio» melancólico, projecção talvez de uma alma ferida, tal como a da «Menina e Moça», de Bernardim Ribeiro, de que a autora se apropria ao longo do livro num contínuo de aproximações/ recuos (como um olhar que oscilasse entre o longe e o perto, o ontem e o hoje) como quem, entre sombras, se procura e ensaia lembrar num mundo onde triunfa o esquecimento e em que o progresso parece enredar-se a todo o instante nas malhas do passado – («O sentimento português aspira não ao progresso mas ao regresso»). Artificioso quanto baste, não deixa de ser curioso, contudo, pensar que o mundo que aqui se aponta (de dedo em riste), em que a arte parece ter-se afastado da vida, ou o contrário, seja também ele gerador de arte, no caso em forma de livro.
Pedro Teixeira Neves