À colheita do ano, como quem vai aos sonhos pelo Natal ou vindima as horas de leitura. Quem lê, parte do que lê, por obrigação profissional, nem sempre consegue arrecadar tempo para outros voos e empreitadas há muito encostadas às prateleiras do nosso contentamento. De modo que neste respigar quase me cinjo a livros que por essas mesmas razões me saltaram ao caminho. Cinjo-me ainda a livros de lavra recente. Os outros, para outra ficam ou para as Calendas. O Régio teria as suas razões para falar em colheita; cada livro pede o seu exacto Setembro para se ler. Para sobre eles se escrever, exactamente o mesmo.
Por partes, como diria Jack. Romance. O primeiro grande soco do ano foi, sem dúvida, o de Valter Hugo Mãe. A sua máquina de fazer espanhóis revelou um crescendo de maturidade de escrita, habilmente doseada com uma ironia muito subterrânea, por vezes ácida, mas, sobretudo, e como quase sempre, despertando grande emotividade que não é senão prova da sua sensibilidade à escrita. Surgiram depois, no gourmet luso-literário, os arremedos de Hélia Correia e de Manuel da Silva Ramos. Ramos, cáustico, excelente no reinventar da escrita e do dizer de um certo se português, ontem como hoje. Hélia, escrevendo, provavelmente o livro da sua vida, o excelentíssimo «Adoecer» empreitada de deixar doente qualquer pretendente à escrita. Por miséria, claro está. A terminar, no final do ano, ou por lá perto, duas surpresas. Afonso Cruz e a su’«A Boneca de Kokoschka», lugar de experimentalismos vários, deambulações filosóficas e muita imaginação. Doutro cariz, não menos poderoso, pela memória viva dos tempos idos e relatados, pelo fulminante emocional das personagens, pelo rigor da escrita, «Ernestina», de Rentes de Carvalho. Bibliotecas que se prezem, é fazer as trocas nos saldos, sobretudo se no sapatinho voz calharem os tacões dos tops.
Portugueses ainda, ou português, também errante como Rentes de Carvalho, mas noutra perspectiva, a da viagem mirabolante que vai empreendendo dentro da sua escrita. É Gonçalo M. Tavares, claro, quem mais? A acenar ao sapatinho, dois livros de uma assentada. Entre eles, como chamar-lhe… Meteoro, prodígio, espanto? Por aí, é «Viagem à Índia». E pronto, viramos a face, e logo outra chapada do prolífico e genial autor, «Matteo Perdeu o Emprego». Investigação, indagação, revelação, cabe um pouco de tudo na orgânica “tavariana”, ou devemos dizer cidade “tavariana” que vai crescendo num jogo de auto-intertextualidade desconcertante e originalíssimo. França reconheceu-o este ano, a rapaziada sueca, vaticino, não tardará muitas primaveras a seguir o exemplo.
E por falar em notáveis. Imprescindível passa a ser a biografia da portentosa Clarice Lispector, assinada pelo yankee Benjamin Moser. A vibrante autora de obras como «A Paixão Segundo G.H.», «A Hora da Estrela» ou os muitos contos escritos, já antes fora «trabalhada» em termos biográficos, vale este volume que a Civilização editou pelo apurado e aturado trabalho investigativo empreendido por Moser, bem como pela paixão que denota pela obra da escritora. Em português, fica a sugestão, há que lê-la nas edições Relógio d’Água. De resto, se de passagem pelo youtube, não deixem de espreitar aquela que estimo ter sido a sua última entrevista (absolutamente intrigante e cativante) à televisão brasileira, isto poucos meses antes de falecer, em 1977. Era na altura em que ainda se podia fumar em televisão!
Estrangeiros ainda, estrangeiro, estranho estrangeiro um tal de Ferdinand von Schirach, cujos contos a Dom Quixote editou. Crime, sangue, racismo, uma lição de como escrever contos – a ler, de uma dentada, sobretudo quando os contos parecem estar a reaparecer como moda, eles que tanto desconsiderados são pelas editoras. Haja calhamaços nos tops… Os anjos nos ajudem… Com estes «Crimes» de Schirach saiba que não sairá da leitura em branco. Do desconhecido escritor, advogado de labuta nascido em Munique em 1964, passo ao genial Dino Buzzatti. Do cavalo editorial de Dom Quixote passamos, pois, para a Cavalo de Ferro, que continua a galopar a velocidade de cruzeiro em matéria de exigência literária; salvo uma ou outras honrosas excepções. Não é o caso. «O Grande Retrato» é apenas mais uma prova do engenho literário do mestre italiano, aqui, como sempre, de mãos dadas com a fantasia mas enveredando pelos penhascos e abismos da ficção científica. Não menos impacto me provocou «A Derrocada», de Ricardo Menéndez Salmón, segundo volume de uma trilogia sobre o Mal a que a Porto Editora iniciara com «Ofensa». À espera do terceiro nos encontramos. Ofensa seria não referir (como muito boa e respeitada crítica não referiu) «O Evangelho do Enforcado», de David Soares. Imaginação, história, bem escrever, muita emoção, eis um grande romance no chamado domínio do fantástico. A ler, a ler, a ler, sem qualquer preconceito de género. Deixe-se de ir pelo rebanho dos tops, insisto. Por último, neste capítulo, como não celebrar a edição em português do delirante John Fante, desta feita, do clássico «A Primavera Há-de Chegar, Bandini». Os parabéns seguem para a Ahab, que como poucas neófitas chancelas editoriais nos tem brindado com excelentes propostas, uma outra, sem dúvida, os contos de Kjell Askildsen, em «Um Repentino Pensamento Libertador» o tempo que eu levei para decorar o nome do autor! Ao contrário das horas que levei a ler as suas páginas. Ah, falta-me ainda uma derradeira referência, para a sempre aconselhável colecção Ovelha Negra, honra e excepção editorial de uma casa que apregoa gostar de trabalhar nas obras. Sugestão: David Toscana e o seu divertido, curioso e fulgurante «Santa Maria do Circo».
Poesia agora, que o Pai Natal também preza. Revelação, ou confirmação, Catarina Nunes de Almeida, com «Bailias», na Deriva. Regresso, ufa, finalmente!, de Margarida Vale de Gato, com esse belo objecto de leitura dito livro que é «Mulher ao Mar». Sem espanto, pelo espanto de sempre, a poesia de Jaime Rocha, desta feita, em «Necrophilia», livro de poemas que pode e deve ser lido em simultâneo com «Adoecer», de Hélia Correia. Lizzie, sempre Lizzie, a portentosa, enternecedora e “estremecedora” história de Elizabeth Siddal e os «seus» pré-rafaelitas. Por último, não menos importante, que dizer da recolha em volume único de toda a poesia de Sophia? Alegria, pois claro.
Duas referências finais, noutros géneros, noutras leiras. Literatura de Viagens. Esqueçam rapaziadas bem intencionadas. Um livro para roteiro: «Viva México», de Alexandra Lucas Coelho. Literatura de viagens? Sim, está lá. Mas também, e tão-só, literatura; de toada jornalística, bem certo, mas literatura. Pura e dura, como a sua escrita e o seu olhar sobre as paragens e gentes que nos dá a viver. Crianças, crianças, enfim, que o Natal é o Natal. Um só título, entre muitos que fui folheando: «Contos Para Meninos que Adormecem Logo a Seguir», assinados por Pinto & Chinto. Da Kalandraka. Boas farturas e leituras.
Pedro Teixeira Neves