Auto-entrevista | Cristina Carvalho

1 – Qual a primeira pergunta que devo fazer a mim própria?

CC – Devia começar por tentar, através desta auto-entrevista, esclarecer os leitores acerca de mim própria, alguns aspectos que eu considero realmente importantes, aspectos da minha vida, da minha obra, dos meus desejos literários, das minhas opiniões e, ao mesmo tempo, revelar as minhas relações com os leitores, o que é que os leitores pensam de mim e o que é que eu penso dos leitores. Trata-se de um exercício difícil porque uma entrevista, normalmente, pressupõe desde logo duas pessoas: uma que pergunta e a outra que responde. Não a mesma pessoa a perguntar coisas a si própria e isto é que é engraçado e insólito. Espero, pois, que os leitores compreendam a dificuldade disto mesmo.
Não irei revelar absolutamente nada a respeito da minha pessoa enquanto pessoa, mas sim alguma coisa relacionada com aquilo que escrevo, porque escrevo e para quem escrevo.

2 – Como se iniciou o processo de escrita que terminou com a publicação deste livro “A Casa das Auroras”?

CC – Penso muito na humanidade em geral. Interesso-me por homens e por mulheres. Não há uma terceira espécie, infelizmente. Muitas vezes sinto que não chega, que somos poucos. Que o sistema não está completo. Que há uma falha, um esquecimento. Mas depois, olho à minha volta e sinto a Natureza, os bichos, as florestas, os penhascos, a água do mistério do mar e a luz do mistério do céu e acho que estou a ser injusta, que afinal o planeta é perfeito, que não falta nada e que se mais houvesse seria impróprio e absurdo. Sendo assim, debrucei-me por histórias variadas de mulheres variadas, desde uma velha muito velha a uma criança passando por histórias de outras mulheres com outras idades. As mulheres são seres extravagantes, complexos e inesperados. A par das abelhas, não sei quem é mais eficaz e inteligente. Já vivi o bastante para recolher muito material, situação absolutamente indispensável para se escrever sobre semelhantes seres. Comecei a escrever este livro quase como uma brincadeira. Verifiquei, dia após dia, que já me seria muito difícil não ficcionar mais e mais e mais, cada vez mais. Senti que teria de viver mil milhões de anos ou mais ainda para falar sobre mulheres. Fiz o que sentia. Mas nunca lá chegarei. Nem eu nem ninguém. Ninguém alcança ninguém.

3 – O que é que a levou à escolha deste tipo de personagens e como as caracteriza?

CC – Como disse na resposta anterior mas que vou estender agora mais um pouco: quis falar de mulheres com várias idades, com diferentes experiências, com vidas em diferentes locais. São personagens femininas de contornos claros, claríssimos. Tudo o que elas dizem e fazem está no seu pensamento. O que acontece é que devido às condicionantes da vida, muita coisa, muita atitude não pode nem deve ser tomada. Há travões, como sabemos. As mulheres desta história são, talvez, umas “selvagens” porque dizem tudo e fazem tudo o que lhes apetece. São seres que não estão condicionados a coisa nenhuma. Nasceram livres e conseguiram manter-se livres toda a vida. No fundo, é tudo uma questão de liberdade individual. E tudo isto tem um preço muito alto. Normalmente, a morte.

4 – Qual a ligação que existe entre as 7 mulheres que compõem este livro?

CC – A única ligação é o facto de serem mulheres e com esta condição assim tão natural já têm muito com que aguentar. Eu tenho dito – as mulheres -. Na realidade, neste livro só existem fantasmas de mulheres. É uma conversa entre pessoas que já morreram e que se encontram num certo sítio com o único propósito de conviver – se é que isso é possível – e contar parte das suas vidas. A única viva é a narradora que desempenha um papel importante mas desinteressante o que me leva a pensar que depois, mais tarde, quando tudo adormecer, quando a noite for uma certeza, ou seja, para além dum outro além, vai ser tudo mais engraçado.

5 – O que é esta Casa das Auroras na realidade?

CC – A Casa das Auroras é o nosso pensamento. Apenas. Onde tudo acontece, onde há uma vida eterna, onde uma pessoa pode deambular à vontade, sem medos, sem constrangimentos, sem vergonha, onde tudo pode ser dito e feito. A Casa das Auroras é a nossa única morada. É lá que, um dia, fomos felizes.

6 – Acredita em fantasmas?

CC – Em princípio, não. Sou incompetente para acreditar seja no que for. Nem sequer sei se os vivos estão bem vivos!! Nem sequer acredito em mim própria! Esta resposta é difícil! Talvez a mais difícil! Posso considerar que nada é nada ou que tudo é tudo. Sou muito ambígua e incrédula. Acredito nas nuvens, apenas. Naquelas que me trazem água, muita água e que, quando se afastam me deixam ver o Sol.

7 – O que distingue este livro dos outros que já escreveu?

CC – É a forma e a construção narrativa. À primeira pode parecer um livro de contos mas não é. Tudo está ligado entre si. Elas não vivem umas sem as outras. É como que um cordão intemporal e imenso, um imenso cortejo de desejos e confissões. Quando escrevi “O Gato de Uppsala” por exemplo, livro que não tem nada a ver com este, senti-me nas nuvens, senti-me fora de órbita. Com este livro, estive ali agarrada à cadeira a fazer pinos e contorções a ver se conseguia ir fundo, muito fundo. Não sei se consegui.

8 – Qual a expectativa que tem em relação à aceitação deste livro?

CC – A minha expectativa é enorme! Precisava muito de reacções do público leitor. Queria continuar a “escavar” nas mulheres, no seu miolo, no seu profundo. Não sei, não faço a menor ideia do que vai acontecer o que me deixa bastante ansiosa. As reacções que tenho tido até agora foram excelentes e, curiosamente, normalmente de homens! As mulheres gostam!! Tenho a obrigação de dizer que esta história, “A Casa das Auroras” já provocou trejeitos de incómodo nalgumas pessoas. Mas a verdade dói. Vamos ver.

9 – Qual é a sua relação pessoal com esta narrativa?

CC – É uma relação complicada. Li o livro muitas vezes porque lhe fiz três versões. A primeira estava bastante diferente. A segunda foi muito emendada e a terceira foi para fazer os últimos “bordados”. De todas as vezes que o lia com olhos de ler apetecia-me emendar tudo outra vez! Tornar a escrever e mais uma vez e mais outra e outra e outra. É complicado! Um livro leva muito tempo a escrever e a sair da cabeça. Muito! E quando se está a escrever estabelece-se sempre uma relação com o assunto: ou se ama ou se odeia e mesmo assim, vai para a frente! Nada é fácil! São horas e dias e meses e anos de trabalho se é que se pode chamar trabalho a uma questão vital.

10 – Está a escrever algum novo livro?

CC – Estou sim. Estou a escrever uma outra história de mulheres mas que nada tem a ver com esta. Passa-se na véspera do dia 25 de Abril, ou seja, no dia 24.
Estou também a escrever, a esboçar uma outra história “para todos” passada só com animais. Com alguns animais.

CRISTINA CARVALHO – 20 de Maio de 2011

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