Fish – armadilha para um leitor ocasional

Quem não for dado a leituras e, portanto, não tendo cultivado um espírito crítico esclarecido, arrisca-se a ser surpreendido por certas obras, acabando por as transformar no “livro da sua vida”. O Principezinho e o Papalagui são dois bons exemplos disso. São livros fininhos, que nos embalam numa metáfora sobre coisas sérias e fundamentais e cuja apreensão terá o condão de alterar, definitivamente, as nossas vidas. Os livros de Lobsang Rampa ou de Augusto Cury são suscetíveis de produzir um efeito similar. Mas atenção, isso só resulta com um leitor ocasional e, portanto, desprevenido.

 

Desde que frequento ações de motivação profissional, foram-me oferecidos dois manuais de autoajuda para o mundo empresarial. Quem não se lembra do “Quem mexeu no meu queijo?”, essa vibrante metáfora sobre o que pretendemos fazer das nossas vidas e a forma como devemos lidar com a mudança?

Este ano recebi o livro “Fish, uma nova cultura na empresa.” Desta feita, os três simpáticos ratinhos deram lugar a peixes voadores lançados através do mercado mais famoso do mundo. Encontramo-nos novamente no domínio da parábola – o que parece ser uma fórmula recorrente dos livros de autoajuda dedicados à gestão empresarial. Em Fish permanecemos no universo das mensagens simples: não podemos escolher o melhor emprego do mundo, mas podemos assumir a melhor atitude do mundo.

É também uma bela história de amor – a mais bela, garantem-nos os seus autores -, e com um final feliz.

Este portentoso instrumento, motivador de uma nova atitude, insiste no uso de um jargão que faria corar qualquer palestrita profissional. Todos nós sabemos que as empresas modernas não têm empregados, funcionários ou subordinados, mas sim colaboradores numa ampla partilha de riscos e delegação de competências. O livro é um desastre em nomenclatura empresarial.

Estes manuais de autoajuda utilizam uma linguagem simples e, no seu ponto de maior sofisticação, recorrem a citações escolhidas a dedo. Frases como “A olhar pode observar-se muita coisa”, são resgatadas da sua ostensiva banalidade pela assinatura da sua autoria. Esta, em particular, pertence a um desportista americano famoso pelas suas tiradas disparatadas.

Dotado de uma escrita próxima das sagas juvenis, apresenta a sonoridade e a eficácia de certos poemas que encontramos nas redes sociais. Uma musicalidade que fica no ouvido, sem contudo dizer nada. Talvez por isso, este livro nos ofereça um poema, escolhido seguramente por falar em fé e fazer refletir sobre a neve fria, o brilho da lua, noite após noite.

Nada disto me causa estranheza. O que me incomoda, é constatar que alguém, a quem foi pedido para organizar um evento de motivação empresarial numa empresa dedicada à cultura, informação e entretenimento, acredite que um livro repleto de banalidades, escrito em forma de parábola e com uma história de amor de final feliz, possa ser a escolha acertada para potenciar uma mudança de atitude dos seus quadros. Que perfil cultural e que hábitos de leitura presumiram ter os profissionais de tal casa? Se um livro destes conseguisse ser o indutor da mudança então o que estaria em causa não seria a atitude, mas sim a urgente renovação dos quadros da empresa por gente mais culta e esclarecida.

“Os tempos felizes estão apenas a começar.”, anuncia-se no livro.

Fish!
Uma nova cultura na empresa
de John Christensen, Stephen C. Lundin, Harry Paul
Editorial Presença

António Ganhão

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António Ganhão

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