Gostava de ser mais nova.

Não lhe perguntei porquê. Era um esforço estéril. Eu sabia a resposta. Todos querem ser mais novos. Não me lembro de querer ser mais novo. Acho mesmo que nunca fui novo. Cortei a fala à minha mãe, sentada a um canto, de xaile atravessado no peito seco e manta nos joelhos. Eu via a minha mãe a tricotar a manta de quadrados de muitas cores, nas noites gastas de Inverno, junto ao lume sem chama. A manta cobria o colo e as pernas, caindo muito direita sobre os chinelos coçados. As mãos rugosas da minha mãe tremiam sobre a manta. Quis sair depressa daquele asilo. Tudo cheirava a velho. Não gostava de velhos nem dos seus cheiros. São cheiros particulares. Nem maus nem bons. Não é sujidade. É desgaste. Cheiros de corpos a desgastarem, de peles a encolherem. São cheiros que nos agarram. Calei a minha mãe para calar o tempo a esgueirar-se, rápido na sua descida para a morte, único desaguar da espera que se arrastava pelos dias alagados de silêncios perniciosos escondidos na sombra. Não desejava ser levado para o precipício com ela. Sofria de vertigens quando me encontrava em lugares altos. Tinha medo de cair e não conseguir levantar-me. A minha mãe resvalava. Cada dia resvalava mais. As pernas paradas, debaixo da manta, inúteis. A ligeireza das pernas dela, quando subiam as medas e os cerros, nos nossos passeios pelo campo. A minha mão a fugir para a porta. E eu a pensar no calo no dedo do meio, onde o lápis e a caneta se apoiavam, com firmeza. O calo já tinha desaparecido.

Julieta Ferreira

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