Descobria plantas, pedras e insetos, fazia listas com os seus nomes e, se ainda não os soubesse, desenhava as suas formas nos papéis que levava nos bolsos e depois, em casa, ia procurá-los, na enciclopédia de lombada grossa, quase a resvalar da prateleira da estante, no escritório do meu pai. Estava numa das prateleiras mais baixas, ao meu alcance, sem ter de subir o escadote, porque o meu pai conhecia o medo que eu tinha das alturas e as vertigens que me davam, logo que começava a subir. Era por isso que a minha mãe escondia as bolachas, os chocolates e as compotas, nos armários mais altos da cozinha.

A minha mãe nunca entendeu o meu fascínio pela natureza. Talvez porque me afastava dela. Era uma artista. Transpunha as imagens, como as via e as sentia, para a tela. Aí ficava a verdade das imagens e não a verdade das coisas e dos seres. Eu, ao contrário, desejava buscar a verdade no que conseguia agarrar, no que via, sem me deixar envolver, sem me deixar levar pela ilusão ou sentimento. Talvez me faltasse o sentido estético e poético para apreciar o mundo. Hoje penso que a velhice tornar-se-ia mais suportável se a minha alma conseguisse ser tocada pela poesia. O poeta e o amoroso são parecidos. Tudo se transmuta, o mundo transforma-se. É um mundo desenhado pelos seus olhos. Nunca fui um poeta ou um amoroso. Julgava que não havia ilusões a ensombrarem, a distorcerem a realidade do que eu via. Hoje tento agarrar qualquer ilusão que me eleve. Que me salve. Eu, que gostava tanto do conforto da terra, aspiro agora aos céus.

Julieta Ferreira

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