Quatro Cantos do Mundo, de Cristina Carvalho

Captar a essência do que se narra e transmitir o belo e o aterrador da vida sem que a escrita hesite ou se exalte. Porque tudo na natureza atinge esse momento em que a noite nos alcança no topo desse mundo branco. E sempre foi assim, mas de cada vez que o é, algo de mágico acontece. Não teremos vivido se não conhecermos estes quatro cantos do mundo. Um livro de Cristina Carvalho.

 

(…) Uma por uma, as pessoas tornam a sair. E ficam por ali, olhando para um horizonte impenetrável, tentando descortinar alguma visão, algum movimento, um sinal, qualquer coisa que lhes garantisse a ausência definitiva e não uma ausência habitual. Mas o vento lambe com sofreguidão o chão, lambe os dorsos dos cães, lambe as paredes arredondadas do abrigo, silva o vento, zurze o vento constante nestes últimos dias. O velho esquimó tinha desaparecido para todo o sempre. A história da sua vida, a partir de uma certa altura, ficará desenhada nas acções e nos corações destes seus descendentes e disso ele tinha a certeza absoluta. Tinha caminhado o dia todo, sempre em frente, sempre em frente até que as suas forças, as débeis forças e o corpo tão frágil o obrigaram a parar.
Acocorou-se. O seu corpo arredondou-se num buraco encostado a um alto bloco de gelo. E agora, perto de si um restolhar na neve, um bafo quente, um encosto, um farejar. Não estava só. Ambos se tocaram. O animal fez com que ele se erguesse de novo e saísse do molde do buraco arrastando-se, de novo, pelo fim do dia. O animal seguiu-o de perto ainda durante um certo tempo. Mas a noite estava a chegar ao topo deste mundo branco. E com a chegada da noite, o frio e o vento rebentariam com tudo e com todos os que ainda viviam a vaguear fora dos seus abrigos. Isso era uma certeza. Muito ao longe, já fora do alcance do olhar, ouvia-se um eco medonho, possante e profundamente negro, muito para além dos calhaus de gelo que boiavam perto das margens, dessas margens sem contornos de nada, uma mancha apenas a separar a terra da água. Era o grande mar.
Molk deixou de se ver. O animal que o bafejou, farejou e seguiu, desapareceu. O céu e a terra são um único esforço. Unem-se e nada se distingue. Talvez por cima da camada de nuvens existam estrelas. Talvez exista um sol, uma lua, uma luz qualquer. Talvez exista uma outra terra, um outro tempo, outras paragens. Talvez um dia a sua família o encontre. Quem sabe por debaixo de tanto gelo, de tanta neve, por detrás de tanto frio, um dia, se juntem todos, novamente.
Neste momento, o velho deixou de pertencer a este mundo animal. O seu espírito deverá ter-se juntado a outros tantos milhares de milhões de espíritos que não se distinguem jamais, esses que esvoaçam por entre todos os corpos celestes num todo inimaginável e confuso a que se chama céu. O seu corpo palpável será devorado por um qualquer urso ou lobo ou raposa com fome, do mesmo modo que ele próprio devorou, enquanto viveu, alguns animais.

Cristina Carvalho em “Vidas Brancas”, história incluída no livro “QUATRO CANTOS DO MUNDO” publicado por Planeta Manuscrito em 2014. Livro incluído no PNL para o 3º ciclo.
As ilustrações são do pintor Manuel San Payo

“VIDAS BRANCAS” foi escrito em homenagem ao explorador Roald Amundsen, o histórico conquistador e explorador dos Polos que viveu entre 1872 e 1928

Em lembrança de um homem e de todas as viagens que fiz, acompanhada por ele, subindo e descendo elevações e planuras geladas que existiam nas dobras dos meus lençóis, sobrevivendo a predadores, conhecendo estranhos animais e sempre e sempre a conseguir salvar-me! A minha vida por uma boa aventura, graças a Roald Amundsen, um dos meus principais heróis.

Leia a recensão aqui.

António Ganhão

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