Todos os dias, a meio da tarde, num ritual que se acomodara aos ossos e à carne, ele deixava a casa e tomava o caminho para a taberna da viúva Mariquinhas. Não que procurasse o aconchego do vinho ou das amenas tertúlias com os velhos companheiros; não era isso que o fazia subir aquela rua estreita e íngreme, de calhaus gastos pelo tempo: apenas desejava encontrar os olhos da Mariquinhas, deliciar-se com o seu riso, as suas maroteiras e o chiste na ponta da língua, numa apaixonada formalidade, cortejando-lhe a presença e graça. Mulher ladina, a Mariquinhas ainda era bonita e mantinha uma jovialidade de fazer inveja às outras da sua idade. E ele — tal como ela — estava só. Embora a vida declinasse, ele teimava em não se deixar vergar pela idade e pela soledade, subindo todos os dias aquela ladeira. E aquela subida, qual metáfora, transformara-se no seu combate particular, no seu campo de batalha: fizesse chuva ou fizesse sol. Pouco falava, quedando-se em silêncio, a contemplar. No secreto do seu espírito sabia que um dia ainda conseguiria conquistar o coração da taberneira. E então sim, os seus dias teriam outro brilho, outro calor e a morte, enfim, seria derrotada, pelo menos desta vez, às mãos do amor.

Paulo Moreiras

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