Nas manhãs, o senhor Winkel toma o ônibus às dez e um quarto. Espera no ponto porque não lhe custa viver antecipado. Fita o par de sapatos de couro marrom brilhoso sob os raios expansivos. O lustre é uma de pequenas manias que o satisfazem. O menino o encontra através da janela do ônibus em movimento. Seriam bolas de gude, os olhos do senhor Winkel, amigo da Mary Poppins em vôo rasante sobre as casas de tijolos? Objetos de brincadeira celestial. O senhor Winkel coça a calvície com as pontas dos dedos cobertas por unhas transparentes devidamente lixadas. Ele sobe pelo degrau rebaixado porque o motorista apertou o botão automático da máquina fantástica. O senhor Winkel acotovela-se entre os passageiros enfileirados, prefere uma ordem natural que o favoreça. Nota-se, em seu rosto, a pele emborrachada e a amarelidão da dentadura. Nos dois braços delgados, resta a goma enegrecida dos esparadrapos que o senhor Winkel não conseguiu esfregar da pele. Enfermidade, temeridade, isto tudo o que vem na rima. O menino lhe sorri, sem que o senhor Winkel retribua a larga alegria viajante de alma para alma. Planta parasita, é o sangue enroscado nos olhos marítimos do velho cuja bondade é um fiasco. A voz nasalada do homem o diminui conforme se aproxima, de todos nós transeuntes. Luminosa centelha, trovoada inesperada, é o senhor Winkel a espantar o menino sorridente para os assentos traseiros do ônibus. Vá, menino, lá para os fundos. Aqui estão os lugares reservados para idosos. O senhor Winkel nem é tão de idade quanto se proclama e reclina-se do lugar conquistado para passar cuspe na mancha estampada sobre o couro do sapato polido à potência infinita. Cada um sabe onde o sapato lhe aperta.
Katia Bandeira de Mello-Gerlach
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