Daquela vez, a fita do Bonfim rasgando nas dobras no momento da nossa discussão. Como um aviso.

Guardo as alianças, um crucifixo, algumas fotos. As santas relíquias na caixa de prata incrustada de pedras.

Também, quando atravessei o portão do edifício na rua tranquila onde morávamos. Final de tarde.

Então partir.

E a certeza de não voltar. Os últimos pertences como se esquecidos na pressa.

No trajeto até a pensão, a igreja da Penha. O meu olhar na sua direção. Aquele lado da rua. As preces que ali mesmo inventei. Os vocativos.

E é o pai que retorna vívido, sua voz firme: ô vida margarida! Uma litania. Um desejo de solução.

Tenho uma foto. Vejo-o de costas, subindo a pequena ladeira em direção ao trabalho na estação ferroviária. O passo largo. O seu jeito de jogar o braço. No sentido contrário, uma garotinha, os cabelos cacheados: a mais velha das minhas irmãs. Ao fundo, a igreja, a pracinha. Algumas casas.

Aquele dia, na hora do almoço, ele falou pausado: o nome do garoto vai ser Conrado. Ouvi no rádio.

Conrado – ele repetiu, demorando nas sílabas.

Minha mãe, a cabeça inclinada na minha direção.

Tia Nanzita contava e recontava.  Um texto decorado. Sem variação.

*

A pequena escada – os degraus de pedra talhada – leva ao caramanchão com suas pilastras de mármore, suas marcas. No mais alto da colina. O mosteiro.

De todos os ângulos casam perfeito: azul, verde, ocre, rosa, roxo e anil.

E mais: o que diviso até onde o limite da minha fé.

Agora. Tanto tempo. Fosse bem antes.

O cambiante das cores. As três partes do dia.  O desmedido silêncio.

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