I
Moacir Amâncio (1949) é um dos maiores poetas brasileiros contemporâneos e passa a ocupar o vazio deixado por Lêdo Ivo (1924-2012) e Ferreira Gullar (1930-2016), de geração anterior, que foram para o andar de cima sem o reconhecimento do Prêmio Nobel de Literatura, que seria o segundo da Língua Portuguesa, depois daquele atribuído a José Saramago (1922-2010) em 1998. (E pensar que, quando se trata da literatura de países do Hemisfério Norte, até compositor de música popular merece ganhar o tal prêmio…)
De fato, depois de um jejum de nove anos, Amâncio cumpre agora, ao publicar o seu sétimo livro de poesia, Matula (São Paulo: Annablume Literária, 2016), uma trajetória singular dentro da Literatura Brasileira, que vai de uma obra romanesca de raízes populares até uma poesia refinada, que repetindo, de certa forma, uma “deglutição antropofágica” à maneira de Oswald de Andrade (1890-1954), absorve a herança cultural judaica, especialmente dos cristãos-novos, e a tradição da cabala para devolver experiências poéticas que levam o leitor a uma viagem através da língua, na busca de um diálogo com a Ibéria hebraica de Sevilha e Córdoba. Essa herança fica explícita com a inclusão no livro de um poema do filósofo hebreu Ibn Gabirol (1201-1055), traduzido por Amâncio:
O inverno escreveu com tinta de chuva
E a pena de raios nas mãos das nuvens
A carta no jardim de azul e púrpura.
Jamais dessa maneira o poeta escreve.
Nesse tempo do zelo a terra ao céu
Qual estrelas bordou canteiros breves.
O livro é também resultado de um longo diálogo com o poeta português E. M. de Melo e Castro (1932), iniciado em Lisboa e continuado em São Paulo, mas ainda em progresso. Como se sabe, Melo e Castro é um dos pioneiros da poesia concreta visual em Portugal, autor de Ideogramas (1962), marco fundador da poesia experimental em terras lusas, que se radicalizou com o tempo, passando a utilizar o vídeo e o computador na produção literária, a chamada videopoesia. É o que se percebe nestes versos:
se o poeta ernesto melo e castro encomenda a
a quem visita a terra traga-lhe uma lembrança dos
seiscentos anos atrás pelo menos aonde nunca foi
sabedor não indiferente
no que converge
aquele montanhês entre o país das gerais e o país
de são paulo aprende da vizinha: nunca entra na
igreja mas se entrares dize tudo que vejo é pau e
pedra
do mundo: amanhã será dia bom
respeita todo aquele que tiver a barba crescida pois
está de luto (…)
Como observa o editor José Roberto Barreto Lins no texto de “orelha” deste livro, é a partir desse caldo de cultura que Amâncio “monta uma espécie de constelação de textos que permitem uma simbiose entre passado e presente como se o tempo fosse um conjunto aos olhos do poeta que expõe esse panorama caleidoscópico ao leitor, para que este de sua parte detecte os pontos que lhe permitam montar a sua própria rede de significados”.
Já o filósofo Rodrigo Petronio, no prefácio “Moacir Amâncio: poesia e paralaxe” que escreveu para este livro, procura desvendar as influências que marcam a atual fase do autor, notadamente embalada por suas leituras de obras da literatura hebraica, até porque o poeta tem doutorado em Língua Hebraica, Literatura e Cultura Judaicas pela Universidade de São Paulo e, atualmente, é professor doutor adjunto da Universidade de São Paulo, com experiência na área de Literatura e Cultura Judaica e Literatura Brasileira, atuando principalmente nos seguintes temas: poesia, poemas, cinema, judaísmo, literatura e artes plásticas.
Diante disso, não surpreende que, em seus versos, retome a arte e o pensamento do século XVI, como observou Rodrigo Petronio com perspicácia, ao desvendar também nos versos abaixo a influência da tradição neoplatônica e cabalista do filósofo, poeta, místico e teólogo Ramón Llull (c.1232-c.1315), ou Raimundo Lulio em castelhano, nascido em Mallorca, e de Abraham Abuláfia (1240-1291), talvez o mais revolucionário mestre da cabala, nascido em Zaragoza:
prefiguração do sempre
num círculo
que abulafiano
que llulliano
rompe o círculo
se faz letra
Em outros versos, percebe-se a influência da circunvolução do mundo, a saga dos navegantes que, de ouvidos moucos para o que (pre)dizia o velho do Restelo, atiravam-se ao destino incerto para descobrir os confins não só nos mares como nas terras da América, da África e de outros continentes. O texto abaixo, por exemplo, parece aludir à Inquisição, mas ao mesmo tempo tem a ver com a expansão colonial e qualquer processo totalitário. É o que se depreende destes versos:
a grande ratazana imaginou
a máquina do mundo um vasto cérebro
pronto a ser roído até o vazio oco
onde ela se alojasse em próprias fezes
e o mundo se fizesse por inteiro
à sua semelhança e justa imagem
II
Nascido na cidade de Espírito Santo do Pinhal, na região Sudeste do Estado de São Paulo, na divisa com Minas Gerais, mas estabelecido na cidade de São Paulo desde jovem, Amâncio estreou na literatura com a novela O saco plástico (São Paulo: Editora do Escritor, 1974), e, depois, surpreendeu a crítica com a prosa fragmentária e experimental de Estação dos confundidos (São Paulo: Símbolo, 1977), romance que trata da vida de Joaquim Chapeta Arruda, um deserdado perdido na desumana e impessoal “terra da garoa”.
Redator de texto conciso e preciso, Amâncio, que passou a maior parte de sua vida profissional nas redações dos jornais Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo, publicou ainda o livro de contos O riso do dragão (São Paulo: Ática, 1981), em que parecia já disposto a extravasar as fronteiras do gênero, deixando de lado certo convencionalismo dos primeiros livros, embora o fragmentarismo e as quebras de frase já indicassem o caminho futuro.
Esse procedimento se acentuou em Súcia de mafagafos (São Paulo: TA Queiroz Editor, 1982), que reúne duas histórias bastante fragmentadas e com a linguagem da prosa já se misturando com a poesia, num tom meio juvenil. O autor não renega sua obra anterior, mas, aparentemente, prefere deixá-la esquecida, pois não consta dos dados bibliográficos que aparecem em seus livros mais recentes.
O que se conhece é que se rendeu à poesia a partir de 1992, quando lançou Do objeto útil (São Paulo: Iluminuras), disposto a oferecer uma nova proposta ao gênero, como se tivesse por meta escapar de certa linguagem exaurida pelo uso ao longo de todo um século de experimentação, repetição e diluições, para se assumir aqui o que o romancista Eustáquio Gomes (1952-2014) escreveu na apresentação de Contar a romã (São Paulo: Record, 2001).
Em Figuras na sala (São Paulo: Iluminuras, 1996) faz uma homenagem à melhor tradição modernista brasileira, assumindo-se como herdeiro do impulso poético de Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) e João Cabral de Melo Neto (1920-1999), mas também paga um tributo ao poeta francês Stéphane Mallarmé (1842-1898), que se valia de símbolos para expressar seus sentimentos através da sugestão, mais que da narração.
Em 1997, publica um livro de reportagens e artigos, Os bons samaritanos e outros filhos de Israel (São Paulo: Editora Musa), interrompendo a sequência de obras dedicadas à poesia. Mas logo volta com O olho do canário (São Paulo: Musa Editora, 1998), que, aliás, diferencia-se de seus livros anteriores de poesia na alternância e variedade dos ritmos, como observou Carlos Vogt na apresentação, e na linguagem elíptica que emprega.
Como gosta de jogar com a ideia de que as línguas latinas são, na verdade, um só idioma, defendendo o argumento de que determinadas emoções e ideias só caberiam adequadamente em italiano, outras em francês, em português, romeno, catalão ou espanhol, Amâncio publica Colores siguientes (São Paulo: Musa Editora, 1999) em que reuniu poemas escritos em castelhano. É o livro que marca o início de uma série de peregrinações poliglotas, que vão atingir o seu auge com Abrolhos em que várias composições estão escritas em hebraico. Esses poemas em hebraico formam um conjunto, na verdade, um livro, que foi inteiramente publicado pela revista Etc., de Curitiba.
Antes, o poeta já havia experimentado no então parcialmente inédito At a construção em inglês de um universo paralelo ao português. Já em Contar a romã presta homenagem ao idioma de Góngora (1561-1627), Quevedo (1580-1645) e Cervantes (1547-1616), especialmente em “Duelo de la nariz y la cara” em que transita do espanhol para o português e igualmente da poesia para a prosa poética (e vice-versa) sem perder o sentido.
III
Em 2001, Amâncio doutorou-se em Língua Hebraica, Literatura e Cultura Judaicas pela Universidade de São Paulo com a tese Dois palhaços e uma alcachofra: uma leitura do romance ‘A Ressurreição de Adam Stein’, de Yoram Kaniuk (São Paulo: Editora Nankin, 2001) em que discute as diferentes formas de se ver o Holocausto em estudo sobre a expressão judaica contemporânea centrada no escritor israelense Yoram Kaniuk (1930-2013) e seu romance Adam filho de cão (Rio de Janeiro: Editora Globo, 2003, tradução de Nancy Rozenchan).
Em Ata (Rio de Janeiro: Record, 2007), reuniu seis livros de poemas publicados até então e outros inéditos, além de ensaios como Dois palhaços e uma alcachofra e Yona e o Andrógino – notas sobre poesia e cabala (São Paulo: Nankin/Edusp, 2010) mais a antologia por ele organizada e traduzida de poemas do israelense Ronny Someck (1951) sob o título Carta a Fernando Pessoa (São Paulo: Annablume, 2015). Também traduziu Badenheim 1939 (São Paulo: Amarilys, 2012), livro de Aharon Appelfeld (1932) e participou da tradução dos poemas da poeta israelense Tal Nitzán (1960) incluídos no livro O Ponto da Ternura (São Paulo: Lumme, 2013).
É autor ainda de O Talmud, tradução de trechos e estudos (São Paulo: Iluminuras, (1995), Ato de presença: Hineni (São Paulo: Associação Humanitas, 2005), organizador, coletânea de ensaios em homenagem à professora Rifka Berezin, Kelipat Batsal (Rio de Janeiro: Book Link, 2005), conjunto de poemas hebraicos que foi publicado também em Ata, e Óbvio, poemas (São Paulo: Travessa dos Editores, 2004).
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Matula, de Moacir Amâncio, com prefácio de Rodrigo Petronio. São Paulo: Annablume Literária, 169 págs., R$ 40,00, 2016. Site: www.annablume.com.br
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(*) Adelto Gonçalves, doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP), é autor de Os vira-latas da madrugada (Rio de Janeiro, José Olympio Editora, 1981; Taubaté, Letra Selvagem, 2015), Gonzaga, um poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002), Bocage – o perfil perdido (Lisboa, Caminho, 2003), Tomás Antônio Gonzaga (Academia Brasileira de Letras/Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2012), e Direito e Justiça em Terras d´El-Rei na São Paulo Colonial (Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2015), entre outros. E-mail: marilizadelto@uol.com.br
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