No escritório da casa demolida, o velho, munido de uma pena, recorda agora o menino que foi, a nebulosa infância cheia de interditos, porque os perigos rondavam e, se não eram os gelados ou o soalho acabado de encerar, podiam ser as visitas do tio-anjo, morto aos três anos, ou até a intimidade com as criadas, acusadas de trazerem para dentro de casa o papão da tuberculose e «os bichos ferozes e as caverninhas» do pecado, castigado, evidentemente, com o fogo eterno.

As restrições não impediram, mesmo assim, o menino de se fazer rapaz numa galáxia de experiências que incluíram desde logo a leitura, mas também o amor, as viagens e, por fim, a guerra na Guiné, donde regressaria já homem para viver o cinzentismo das diuturnidades e das ajudas de custo, a par de uma carreira literária que o consagraria e atrairia ao seu convívio tantos admiradores verdadeiros e falsos. Agora, no regresso à casa demolida, sobrevêm o tédio e a solidão entre as rotinas e os rascunhos, a sesta e o funcionamento dos intestinos, Bach e o telejornal.

Astronomia é um romance lúcido, profundo e implacável sobre a vida de um escritor português.

Fonte: Nota de Imprensa LeYa.

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