As tuas imagens que fui recolhendo, flagrantes de um adeus anunciado, ao correr dos anos foram sempre dos mesmos lábios entreabertos, do mesmo olhar apreensivo frente à objectiva da câmara. Sempre do mesmo cabelo espesso e bárbaro e, nas fotos dos grupos do Verão, sempre do mesmo corpo: barro húmido por modelar pelo barro húmido de outros corpos.

Pois, agora resigno-me: chegou a hora de me obrigarem a entregar-te – à tua pele, músculos e ossos saudáveis, esquecidos como estão os aniversários com pais e mães a decorar o segundo plano, desfeitos os grupos de adolescentes nas gares dos aeroportos, obrigaram-me a entregar-te assim, tão inteiro e completo num gesto de reconhecimento final da tua ausência desde o primeiro disparo da minha máquina fotográfica.

Decidi desfazer-me de todas elas, das tuas imagens. Incapaz, porém, do desapego absoluto, guardei o que resta de ti num rectângulo minúsculo, a dita foto-tipo-passe – um “tu” reduzido ao mais comum e ao mais simples, sendo isto muito pouco ou até demais. Mesmo assim, ei-lo: o olhar bárbaro sobre a tentativa fútil de te apreender, os lábios suspensos na articulação da palavra: “adeus”. Mirada apreensiva sobre a ideia do quanto te quis imóvel, imagem da minha imagem, tão quieta a contemplar-te através do olho da minha máquina fotográfica.

Uma lucidez misteriosa desde há muito que mo fez saber: todas as molduras de retratos breve se esvaziam da ilusão de conterem espelhos.

Marcela Costa

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