Em tempos, escrevi neste sítio umas linhas soltas sobre verosimilhança, a propósito do sem
propósito com que se tem inundado as livrarias com obras que se apresentam como romances
históricos. Sem dúvida, algumas delas são estimáveis, pela carga de erudição e informação.
Em poucos casos, pela qualidade literária. Pela união destes dois requisitos, em raríssimas
ocasiões. Aqui, aliás, observa-se uma recorrência que é também habitual noutros aspectos da
vida: quanto maior a pesporrência, menor a valência. Fica o provérbio, ora inventado, e vai
sem cobrança de direitos.
Eu atrever-me-ia a recomendar, aos multitudinários autores, duas consultas: uma, de carácter
mais erudito, a uma obrita da autoria de Aristóteles Estagirita, a que tem sido dado o nome
de «Poética». É um livro pequeno, e não é necessário alguém deter-se nos aspectos relativos,
por exemplo, a questões mais especializadas de versificação grega. Sim, os leigos – como eu –
estão autorizados a saltar algumas páginas. Há duas traduções próximas em português – que
eu saiba – uma do Professor Eudoro de Souza e outra de Ana Maria Valente, com prefácio,
muito esclarecedor de Maria Helena Rocha Pereira.
Talvez não seja mau os autores aperceberem-se de que algumas das questões sobre que se
interrogam (o que é estimável) ou sobre que pontificam (o que é péssimo) já foram tratadas,
a propósito da tragédia, por um dos espíritos mais brilhantes de sempre na História do
pensamento. Se considerarmos as criaturas que escrevem livros de auto-ajuda ou andam pelo
mundo a palestrar sobre a redacção de argumentos de cinema, por exemplo, ou de peças
de teatro, ou o que for, nota-se quando elas passaram por aqui. O velho Aristóteles faz a
diferença. Misterioso, não é?
Considerem o vociferante Robert Mckee, por exemplo, que anda por aí aos berros a convencer
meio mundo de que o pindérico «Casablanca» tem o melhor argumento de sempre. Uma das
razões por que Mckee não está completamente desacreditado (ao invés de outro benemérito
chamado Sydney Field, que tem a vantagem de escrever um inglês cristalino) é que se nota
que na sua túrgida congeminação (Story) há ressonâncias dos estudos literários e da cultura
clássica. O homem não se limitar a gritar e a armar ao pingarelho. Leu, reflectiu, estudou.
A outra consulta que eu sugiro é a de uma célebre carta do poeta Inglês Coleridge a outro
grande poeta, seu amigo, Wordsworth. Com algum esforço, encontra-se na NET. Foi assim que
lá cheguei, se não estou em erro. Coleridge, a dado passo, que cito de memória, menciona
a «fé poética», que logo abaixo define como «uma suspensão voluntária e temporária da
descrença (desbelief)». A frase é citadíssima, mas convém que seja conhecida pelos escritores
aventureiros que não circulam nos meios académicos.
Trata-se de convencer um bom leitor, um leitor céptico e informado, cansado de frases,
carregado de desconfiança, de bocejo pronto e sobrolho derribado. Seduzi-lo, empalmar-lhe o
cepticismo, moderar-lhe a rabugem. Nada na manga, nada no fraque, nada na cartola, de onde
saltou este coelho?
E para se ser um bom mágico é preciso muito treino. Salvo caso de milagre ou genialidade,
como eu exceptuo sempre. Mas, aí, calo-me.
MdC
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