Abriu a mala para retocar o batom, num gesto quase maquinal, a quebrar o fastio da espera na sala pouco movimentada. Ao procurar na bolsa, sentiu na mão um objecto com o frio de metal e não o tubo esperado. Espreitou. Mal podia acreditar no que via. Ali, na sua mão direita, um canivete suíço, vermelho, tão longo como a sua mão aberta. Estremeceu, olhou em volta, tornou a fechar a mala. Ninguém podia ver o objecto proibido num lugar daqueles, altamente vigiado, no coração de um continente em crise, com sensores presumivelmente implacáveis. Certificou-se de que nenhum alarme soava, que nenhum vigilante se lhe dirigia. Continuou fingindo a maior calma, a mala aconchegada no colo, a pensar no que fazer ao canivete. Deixá-lo ali caído, deitá-lo num recipiente de lixo, enfiá-lo no bolso do casaco do passageiro adormecido a seu lado. Nenhuma das hipóteses lhe agradou, o habitual poder de imaginação a falhar redondamente. Foi quando se fez luz na sua cabeça aturdida pela insólita situação. Para que serve uma arma daquelas? Para cortar. Cortar o quê? Começou então, metodicamente, a cortar em pedaços os poucos passageiros em espera. Cabeça de um que já prometia pendências, pernas de outro, ali convenientemente esticadas, a mão de outro, abandonada no banco, e mais um pé descalço, e uma orelha do outro a pedir misericórdia, e ainda…
“Senhores passageiros do voo XYZ com destino a KKKK queiram dirigir-se à porta 000”.
Desistiu da degola seguinte, agarrou a mala, olhou em volta, nada de alarmes, dirigiu-se à porta indicada. Atrás dela, uma fila de zombies que reconheceu claramente. Um deles chegará a presidente de uma qualquer república, pensou. Já no avião, voltou a procurar o canivete na mala. Lá estava. Achou estranho que agora as lâminas também fossem vermelhas. Agarrou-se aos braços do assento. Tinha sempre medo nas descolagens. Para se acalmar, pensou em contos de terror.
Licínia Quitério
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