Houve também aquele dia, no início de 1988, em que fui entrevistar

José Bento Faria Ferraz, o antigo secretário de Mário de Andrade. Mário

estava morto havia 43 anos e já era o mito em que se transformou. O velhinho

que me abriu a porta naquela manhã paulistana também resplandecia de uma

mitologia própria, ainda que de empréstimo, por ter servido durante anos

ao chefe famoso e pelas menções que este lhe fez em suas cartas a Manuel

Bandeira, Drummond, Pedro Nava, Fernando Sabino e outros. Por exemplo,

numa carta de Mário a Murilo Miranda, encontro esta referência: “Tenha

paciência com o meu secretário, este mui ilustre zebentinho cabeça de água”.

A primeira coisa que Zé Bento me mostrou foi uma carta inédita de

Mário dirigida a ele, Zé Bento. Estava datada de 26 de novembro de 1943.

Mário derramava-se em confidências ao jovem secretário. Sentia-se doente e

não viveria mais que dois anos. Na carta, contabilizava os sinais inequívocos

de seu declínio: “Me desculpe, mas ando de uma fragilidade, não sei se moral,

se intelectual incrível”. Estava agastado com umas críticas que recebera de

Sérgio Milliet e de Luís Martins. Dormia mal. “Teve um momento, na noite de

quarta para quinta, em que passei apenas por um entressono leve, de repente

me acordei, fazia uma hora, pouco menos que me deitara. E foi horroroso,

palavra, porque não dormi nem mais um segundo a noite inteira, sem poder

mudar meu pensamento de lugar”.

José Bento lia a carta para nós e parecia voltar no tempo. A voz era

melodiosa e os olhos vivos ainda deixavam adivinhar o jovem que morou

neles e que por dez anos freqüentara a Rua Lopes Chaves 42, um dos

endereços mais célebres da crônica literária brasileira. Eu tinha me preparado

para uma entrevista centrada na personalidade de Mário (pretendia confrontá-

la com a de Zeferino Vaz, fundador da Universidade de Campinas, de quem

Zé Bento também foi secretário na década de 50), mas eis que encontro

um homenzinho escoltado por um imenso gravador (gravava as próprias

entrevistas) e que empostava a voz ao falar de si e de seus dois patrões.

— 13 de janeiro de 1988. Estão aqui o sr. Sidraque Matias e seu

fotógrafo, o sr. Antoninho Perri, para uma conversa-depoimento sobre as ricas

personalidades de Mário de Andrade e Zeferino Vaz.

Já aí compreendi que não arrancaria dele grande coisa. Por mais que me

esforçasse para obter particularidades da vida de seus dois chefes, só recebia

de volta respostas consabidas. Às vezes, para fundamentar melhor sua tese

(porque eram teses, não informações o que ele me dava) buscava num fichário

uma citação de Mário, um verso, um trecho de carta. Terminei a manhã

manuseando uma pasta alfa-zeta gorda de poemas inéditos, poemas dele, Zé

Bento.

— Mostrou alguma vez estes poemas ao mestre?

— Não, respondeu. São poemas de após a maturidade. Mário já estava

morto há muito. No tempo de Mário eu não pensava em escrever poesia.

No final, à custa de cutiladas, pode ser que a entrevista não tenha

resultado de todo má. À saída, Zé Bento, generoso, quis me dar de presente

uma cópia da tal carta, escrita de uma fazenda em Araraquara. Mário era

capaz de se derramar inteiro para o rapaz que lhe enchia os tinteiros: “Me

sinto desalentado, mesmo desarvorado, destituído de resistências”. Nem

mesmo o ipê florido da entrada da fazenda conseguia levantar seu ânimo: “De

um roxo violento dado a vermelho, imenso, no meio do céu. Já fiz essa

viagem a Araraquara só pra ver ipê. Teve outra que fiz só pra escutar cigarras.

Fico horas tomando sol, os olhos presos no ipê, não sinto nada. É horrível,

meu Zé Bento”.

Dona Sônia, a esposa, fora aluna no conservatório onde Mário era

professor. Conheceram-se ali, ela e Zé Bento. Desde então trazia o pobre em

rédea curta, ciumenta de sua marioandradina mania:

— Vai invadindo a casa toda com livros. É uma vergonha.

Na obscuridade da biblioteca, ele me sopra no ouvido: “Sempre que

trago uma estante nova, mando subir com ela desmontada para a velha não

perceber. Quando descobre, já está montada e cheia de livros”. Quando dona

Sônia se aproxima, pergunto a ela como era Mário.

— Um homem feio, responde.

— Tanto assim?

— Muito feio. Mas bastava conhecê-lo um pouco para se começar a

achar ele bonito.

Mário, diz Zé Bento, era louco por bananas-maçãs. No tempo em que

dirigia o Departamento de Cultura do município de São Paulo, interrompia

reuniões para mandar comprar pencas de bananas no mercado. O contínuo

voltava com uma cesta cheia e depositava na mesa do diretor. Enquanto as

reuniões avançavam, Mário distribuía bananas aos participantes e já ia

comendo as primeiras para dar logo o exemplo.

Zé Bento desce a escadinha em caracol com a carta na mão, eu atrás

dele, e o Perri mais atrás ainda. Saímos para fotocopiá-la numa papelaria

próxima. Ele passa de uma calçada a outra com a agilidade de um gato,

caminhando sempre à nossa frente, flutuando na maré de veículos, como se

Mário o esperasse do outro lado, em meio às espirais de fumaça. De repente

pára, abre a carta e lê mais um trecho enquanto o sinal se fecha:

— “Eu sei que as compensações são muitas e são enormes. Mas a

tragédia dos indivíduos apaixonados que nem eu… As pessoas que a gente

consegue conquistar, assim que conquistados como que não nos interessam

mais, pelo menos é certo que não nos contentam. E a gente vive como

cachorro sem dono, lambendo o rabo dos que não nos compreendem. É feroz,

Zé Bento.”

Uma moça emparelhada conosco se interessa, dobra um lábio

admirativo e comenta: “Poxa, é isso aí”. Zé Bento ri e o faz como se Mário de

Andrade, redivivo, também risse e mostrasse as gengivas em plena Paulicéia

da década de 80. Nunca mais vi José Bento Faria Ferraz. Busco seu nome na

Web. Há uma única nota sobre ele, aliás, sobre sua morte. Morreu em março

de 2005, aos 92 anos.

 

Eustáquio Gomes

 

Eustáquio Gomes, jornalista, é autor dos romances A febre amorosa e Jonas

Blau, entre vários outros. Em 2007 publicou Viagem ao Centro do Dia – um

Diário.

Eustáquio Gomes

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