Na morte de Herberto Helder | Adelto Gonçalves

I

Se Fernando Pessoa (1888-1935) foi a figura de proa da poesia portuguesa na primeira metade do século XX, na segunda esse espaço foi ocupado por Herberto Helder (1930-2015), um poeta fascinado pelo poder encantatório da linguagem, decorrente do uso ritual da palavra, como observou Maria Estela Guedes num dos dois livros que escreveu sobre essa personagem mítica, Herberto Helder, o poeta obscuro (Lisboa, Moraes Editores, 1979).
De fato, como observa a autora no segundo livro que dedicou à produção do poeta, A obra ao rubro de Herberto Helder, publicado em 2010 pela Escrituras Editora, dentro da Coleção Ponte Velha, em edição apoiada pelo Ministério da Cultura de Portugal e pela Direção-Geral do Livro e das Bibliotecas (DGLB/Portugal), em todos os seus poemas, está presente um tipo de magia fundada no trabalho poético sobre as palavras. E que, especialmente, procura imagens na Natureza. Esse trabalho pode ser sintetizado nestas palavras de Herberto Helder, que estão no o prefácio de seu livro As magias (1987): (…) Mas as palavras não são apenas palavras. Tem longas raízes tenazes mergulhadas na carne, mergulhadas no sangue, e é doloroso arrancá-las.
Arrancar palavras da alma parece ter sido a obsessão desse poeta que, a exemplo de José Saramago (1922-2010), único Prêmio Nobel da Literatura Portuguesa, não colocou na parede diploma de nenhuma universidade. Se Saramago, que também foi bom poeta, além de excepcional romancista, não freqüentou os bancos de nenhuma faculdade, Herberto Helder chegou a matricular-se na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, mas não concluiu nenhum curso. Formou-se, isso sim, na universidade da vida. Sem contar que sempre foi um ávido leitor, não só de poetas e romancistas europeus, como de poetas latino-americanos como o mexicano Octavio Paz (1914-1998), o argentino Jorge Luís Borges (1899-1986) e o chileno Vicente Huidobro (1893-1948).
Como se lê na biografia Herberto Helder, a obra e o homem (Lisboa, Arcádia, 1982), que escreveu a professora Maria de Fátima Marinho, vice-reitora da Universidade do Porto, o poeta, nascido no Funchal, sempre esteve na contramão da sociedade bem comportada. Por isso, sua figura, a partir da notoriedade de seus versos, passou a ganhar uma aura mítica, que só aumentou nos últimos anos, depois que se refugiou num pretenso anonimato, recusando-se a receber prêmios literários, como o Fernando Pessoa, na década de 90, e a conceder entrevistas e até a deixar-se fotografar.
Em linhas gerais, viveu uma vida em construção, sem muito apego a valores burgueses: foi propagandista de produtos farmacêuticos, redator de publicidade e outros ofícios. Sabe-se também que viveu precariamente como imigrante em países como França, Holanda e Bélgica, onde igualmente desempenhou trabalhos que os naturais do lugar se recusam a fazer. Em Antuérpia, teria sido guia de marinheiros e turistas nos meandros da zona do meretrício. E até cantor de tangos.
Só em 1960, depois de voltar a Lisboa, conseguiu um emprego mais estável como encarregado das bibliotecas itinerantes da Fundação Calouste Gulbenkian que viajavam pelas vilas e freguesias. Foi ainda repórter e redator por dois anos de uma revista em Angola, às vésperas da derrubada do regime colonial. Em Lisboa, atuou também em TV e Rádio.
Morto o poeta, naturalmente, agora abundam os elogios das fontes oficiais, mas a verdade é que Herberto Helder, ainda que tenha publicado uma vasta obra, foi um poeta marginal e desconhecido nos meios criadores de arte em Portugal por muito tempo – e mais ainda pelo público e até mesmo pelos acadêmicos brasileiros. Só nos últimos tempos passou a ser mais reverenciado e seus livros procurados – um ou outro chegou a alcançar tiragem de cinco mil exemplares, o que é surpreendente em se tratando de poesia. Se sua poesia transcendeu a de Fernando Pessoa, ainda não se pode dizer. Se não chegou a tanto, passou perto.

II

Em A obra ao rubro de Herberto Helder, Maria Estela Guedes, além do fascínio do poeta pelo misticismo, destaca a sua atração pelos aromas. E cita um verso de seu primeiro livro, O amor em visita (1958), em que ele põe no papel uma de suas mais espantosas imagens: Dai-me uma mulher tão nova como a resina / e o cheiro da terra. E destaca outro do mesmo poema em que vai buscar na Natureza e nos aromas a matéria-prima de seu fazer-poético: E as aves morrem para nós, os luminosos cálices / das nuvens florescem, a resina tinge / a estrela, o aroma distancia o barro vermelho da manhã.
Maria Estela ressalta a liberdade de expressão de Herberto Helder que, em A faca não corta o fogo (2008), ultrapassa os limites do bom gosto burguês, com imagens insólitas, experimentalismo contínuo, mundo mágico, que o aproxima da poesia surrealista. E lembra de um poema constante desse livro em que o poeta pede que, quando de sua morte, antes de alguém se preocupar com cerimônias fúnebres, “deve certificar-se de que está realmente morto, matando-o”.
O livro de Maria Estela Guedes analisa também os textos que o jornalista Herberto Helder escreveu para o Notícia, de Luanda, assim chamado no masculino, embora fosse uma revista semanal, até então nunca estudados nem inventariados. Sob a rubrica Mesa da Redacção, o autor publicou notas e comentários de livros, exposições, filmes e outros temas, em que se destacam a leveza e informalidade dos textos. Há textos também em que se assina com pseudônimo porque aquela era uma época em que todas as edições só saíam a público depois de visadas pela Comissão de Censura do regime salazarista.
Não se pode deixar ainda de citar a afinidade que Maria Estela assinala em Herberto Helder com a geração beat, especialmente no livro de ficção Os passos em volta (1963), em que, aparentemente, o autor valeu-se de sua experiência como viajante ao léu por países da Europa, bem ao estilo da contracultura das décadas de 60 e 70.
Como se vê, para quem no Brasil ainda pouco conhece da obra de Herberto Helder ou o descobriu agora, quando a sua morte ofereceu a oportunidade aos jornais e à mídia digital de reverenciar o seu nome, uma boa partida é ler este livro de Maria Estela Guedes, que desde a década de 70 dedicou-se em boa parte a estudar a sua produção. Aliás, o texto deste livro e de outros trabalhos de Maria Estela sobre o poeta podem ser acessados no site www.triplov.com.

III

Maria Estela Guedes (1947) nasceu em Britiande, Lamego, onde mora hoje, mas viveu na Guiné Bissau de 1956 a 1966, ao tempo do colonialismo que coincidiu também com o de sua formação pessoal. Reuniu seus poemas evocativos dessa época e de uma Guiné-Bissau que já não existe no livro Chão de Papel (Lisboa, apenas Livros, 2009). Diretora do site Triplov, um dos mais significativos de divulgação das literaturas de expressão portuguesa, faz parte da Associação Portuguesa de Escritores, da Sociedade Portuguesa de Autores, do Centro Interdisciplinar da Universidade de Lisboa e do Instituto São Tomás de Aquino.
Entre seus livros, estão também SO2 (Lisboa, Guimarães Editores, 1980); Eco, Pedras Rolantes (Lisboa, Ler Editora, 1983); Crime no Museu de Philosophia Natural (Lisboa, Guimarães Editores, 1984); Mário de Sá Carneiro (Lisboa, Editorial Presença, 1985); O Lagarto do Âmbar (Lisboa, Rolim Editora, 1987); Ernesto de Sousa – Itinerário dos Itinerários (Lisboa, Galeria Almada Negreiros, 1987); À Sombra de Orpheu (Lisboa, Guimarães Editores, 1990); Prof. G. F. Sacarrão (Lisboa, Museu Nacional de História Natural-Museu Bocage, 1990); Tríptico a solo (São Paulo, Editora Escrituras, 2007); A poesia na Óptica da Óptica (Lisboa, Apenas Livros, 2008); Quem, às portas de Tebas? – Três artistas modernos em Portugal (São Paulo, Editora Arte-Livros, 2010); Tango Sebastião (Lisboa, Apenas Livros Editora, 2010); Arboreto (São Paulo, Arte-Livros, 2011); Risco da terra (Lisboa, Apenas Livros, 2011); Brasil (São Paulo, Arte-Livros, 2012); e Um bilhete para o Teatro do Céu (Lisboa, Apenas Livros, 2013), entre outros.
Como teatróloga, escreveu O Lagarto do Âmbar, levado à cena em 1987, no Acarte, na Fundação Calouste Gulbenkian, com direção de Alberto Lopes e interpretação de João Grosso, Ângela Pinto e Maria José Camecelha, e cenografia de Xana; A Boba, levado à cena em 2008 no Teatro Experimental de Cascais, com encenação de Carlos Avilez, cenografia de Fernando Alvarez e interpretação de Maria Vieira.
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A obra do rubro de Herberto Helder, de Maria Estela Guedes. Organização e prólogo de Floriano Martins. São Paulo: Escrituras Editora, 190 págs., 2010, R$ 20,00. Site: www.escrituras.com.br
E-mail: escrituras@escrituras.com.br
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(*) Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP) e autor de Os vira-latas da madrugada (Rio de Janeiro, José Olympio Editora, 1981), Gonzaga, um poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002), Bocage – o perfil perdido (Lisboa, Caminho, 2003) e Tomás Antônio Gonzaga (Academia Brasileira de Letras/Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2012), entre outros. E-mail: marilizadelto@uol.com.br

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