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Vale tudo? Parece que sim, em se tratando de literatura. Ah, é ficção? Então faça-se batota à vontade. Não há crime e poucos dão por isso.

Às vezes penso que sou demasiadamente severo para com estas pessoas que ascendem à literatura num adejo de candura e auto-satisfação. Ocorre-me a descrição de Mark Twain, num livro da minha juventude, de um rei Artur, incógnito entre camponeses, a discretear sobre e «árvore das cebolas». Mark Twain é indulgente e bonacheirão para com a personagem. Eu bem gostaria de ter essa caridade.

Abri outro dia ao acaso um livro de uma personalidade mediática que, segundo indicação das letras da capa (onde a imagem representa alegremente uma outra e conhecida senhora), versaria sobre determinada figura da História de Portugal, falecida no primeiro quartel do século XV. Logo calhei na página em que duas jovens abrem uma arca em que há bolas de naftalina.

A pessoa que escreveu esse livro não teria hesitado quando usou a naftalina? Não teria tido sequer a suspeita de que rolava ali um odoroso anacronismo? Não lhe retiniu, sequer ao de longe, nos refegos da alma, um toque de aviso?

Admitamos a evidência de que estas coisas às vezes acontecem, há lapsos, há deslizes, há erros. Onde não? Provavelmente até se poderão fazer antologias de anacronismos nos melhores autores. Guardem-se os obscuros Walter Scott, Vítor Hugo, Alexandre Dumas, Henri Sienkiewicz, Herculano e Garrett, Teixeira de Vasconcelos, Rebelo da Silva, Louis Aragon, José Saramago, Robert Graves! Guarde-se uma multidão doutros nomes, igualmente misteriosos, que cometeram o romance histórico. Não estão livres duma lupa espiolhadora a denunciar os erros, com a implacabilidade com que se acusam os nódulos duma trama.

O problema é que folheando o resto do livro se verifica estar ele, por inteiro, à altura deste anacronismo. Nunca passaram sob os olhos da autora textos da Idade-Média em Português. Provavelmente não passaram nenhuns outros. E não se detecta sequer a preocupação de uma outra benemérita, que, desconfiada de que antigamente não se falava como agora, introduz, de vez em quando, um vocábulo que considera imbuído da pátina das eras: «medrar»

Porque é que esta criatura não tira o raio dum curso? Porque é que não pede a alguns professores que lhe indiquem textos? Porque não se recolhe a estudá-los e a anotá-los? Porque não se vira durante uns tempos para as bibliotecas? Fale com pessoas, peça opiniões, consulte…

Disseram-lhe, se calhar, que a maior parte dos escritores é aberrantemente progressista, o que não é de todo verdade. Há excelentes autores reaccionários. Grande mercê faria a todos se ouvisse os escritores reaccionários.

Não que isso lhe conferisse especial aptidão literária. Temos casos de universitários sobre os quais se pode dizer que o que transborda em conhecimentos falta em alcance literário. Mas ao menos podia evitar ao leitor o desconforto de uma tentativa de agressão cultural tão crua.

Ora o pagode compra-lhe estes livros, adora estas tretas, tem entusiasmos alarves na Net. Os locutores rejubilam. Se calhar a tal senhora exulta. E desmerece este meu tipo de comentários, aliás benévolos, tendo-os por despeitados, caturras, porventura «ultrapassados». Não seria melhor informar-se, averiguar, reflectir, estudar?

Mário de Carvalho