Emma, uma menina morena, pequena, robusta e de coxas gordinhas, não usa tranças sem nelas colocar uma rosa que brilhe ao longe, quase parecendo no seu rosto existir um sol.
A menina é triste, não sabe da mãe e chora todos os dias.

Vive com a madrinha, desde quando ainda só tinha meses de idade, e que passou a ser a sua mãe.

Pela manhã, bem cedo, vai acordá-la para a levar à escola e ela, sem um sorriso, levanta-se, vai para o quarto de banho lavar o rosto, e ver-se ao espelho.
Dirige-se depois à cozinha, onde tem já o pequeno-almoço pronto.
Toma o seu leitinho, não muito quente, ela não gosta do leite quente, pois, vive numa cidade de muito calor. Com apetite, toma o leite e mastiga lentamente um pão com manteiga. Os seus olhos fundos, negros, na vastidão do rosto, os lábios carnudos, mastiga.
– Quem fez este pão, madrinha? Pergunta a Emma com uma voz distante, muito fininha.
– Foi o padeiro Emma, respondeu a madrinha.
– O padeiro? Quem é ele? De novo, a menina.
– O padeiro é um senhor, que usa uma bata branca, que se levanta sempre muito cedo, muito cedo mesmo, aliás, ele levanta-se quando nós nos vamos deitar, para podermos ter a esta hora, todos os dias, um pãozinho para comer, para todas as pessoas, no seu pequeno-almoço, terem como nós, um pão. Tentou a madrinha explicar-lhe.
– E ele fica triste, madrinha? Pergunta a menina.
– Não Emma, ele fica feliz por poder fazer uma coisa tão importante para todas as pessoas, para todas as crianças, isso já o faz sentir-se feliz, sabes?

De mãos dadas com a sua madrinha, Emma segue agora a caminho da escola, que fica do outro lado do bairro onde vive.
Nem sempre o dia está como hoje, onde se sente a despontar um belo sol, ao fundo, pelas frinchas dos edifícios que dividem o espaço disponível, até conseguir ver-se o sol, a abrir-se, pequeno como as pessoas, que quando nascem, são também pequenas e vão depois crescendo, crescendo, até ficarem grandes como o sol da hora do almoço.

– Assim gosto mais madrinha, com sol, porque com chuva o meu laço iria estragar-se, e eu chorava.

Diz entretanto a Emma, depois de uma pausa em que observava o sol que nascia lentamente na caminhada que fazia, longa, pela manhã, ter que atravessar tantas ruas e por baixo de imensos prédios, e ela, com passos de gente pequena, seguia, de mãos dadas com a madrinha.

As duas caminham no meio de conversas que sempre têm, atravessam pelas passadeiras das ruas, pela manhã que acaba de nascer também.

– Quando eu for grande vens comigo à escola também, madrinha?
– Quando fores grande vais sozinha, Emma.
– Não, madrinha. Quero que vás sempre comigo, prometes?
– Quando fores mais crescida, sabes, já a madrinha é muito velhinha, e não vai ter forças para ir contigo…
– Oh… então vou deixar de ir à escola madrinha, vou ter muito medo de andar sozinha…
– Não vais ter não! Vais ser uma menina muito forte!
– Esta escola é para os meninos pequenos, madrinha, sabes? E quando eu crescer vou para outra escola, de meninos grandes. Os meninos grandes vão sozinhos?
– Sim, os meninos grandes vão sozinhos.
– Então não quero ser crescida madrinha, quero ser pequenina sempre, para ires comigo todos os dias, depois ficas cá fora à espera que o sino toque, eu venho a correr para te abraçar e irmos as duas para casa, almoçar, comer a sopinha, posso, não posso madrinha?
– Olha Emma, vou contar-te uma coisa, verdadeira, de quando era pequena também, assim como tu:

Na aldeia, onde a madrinha nasceu e cresceu, não tinha pai. A minha mãe era muito pobre e tinha de sair muito cedo de casa, todos os dias, e eu ia com as outras meninas, assim pequenas também, para a escola, quer chovesse muito, quer chovesse pouco, e lá íamos todas juntas, fizesse frio ou calor.
E a sala onde a madrinha tinha aulas não era uma sala assim como a tua, era debaixo das árvores, sentados no chão, e a professora ficava em pé a ensinar os meninos todos daquele tempo, a ler e a escrever.
Não podíamos ter medo porque éramos fortes, não tinha quem me levasse à escola e tinha de ir mesmo assim, sabes Emma, e depois, a madrinha cresceu e mudou de escola, e ia na mesma sozinha ou com as outras meninas, colegas da escola, da nossa escola onde o tecto era a copa das árvores.
Não tinha medo Emma, era forte, tinha que ser forte.
– Eu também sou forte madrinha, mas tenho medo, sabes porquê?

A madrinha fechou os olhos, enquanto caminhavam, as duas numa passada meio acelerada, entretanto escutava a menina ia dizendo que tinha uns olhos fundos e tristes, cabelinho preso por duas tranças, uma de cada lado da cabeça, e em cada uma das tranças, uma rosa pequena, que por um elástico se prendia ao cabelo, num brilhante colorido, que balouça, que bamboleia a cada passada, como quem se agita sob um vento forte, e para dentro a madrinha sentia o suor, esperava sempre uma pergunta mais forte de Emma, que, como todas as crianças desta idade, a frescura mental surpreende, ilumina como um sol que nos abrilhanta a vida, o dia, a tarde, conta-nos como se os seus raios nos tocassem e dessem também a mão, seguissem connosco este caminho de todos os dias, pela manhã, a caminho da escola, depois, à hora do almoço até casa, almoçar, conversar, e depois juntas brincar ao esconde-esconde.

– Sabes madrinha, os outros meninos, quem vai buscá-los é sempre a mãe, e a mim és sempre tu, não é? Mas escuta, és a minha madrinha e não és minha mãe porquê?
– Sabes Emma, todas as pessoas nascem, crescem, mas um dia, todas as pessoas partem para o céu, para junto de Deus, a mamã foi para o céu e fiquei eu contigo, depois da guerra, sabes, coisas feias e más da guerra, levaram muitas pessoas desta vida, e a mamã foi uma delas, está no céu e continua a gostar muito de ti. Sou tua amiga, madrinha, mãe, e sou tão forte como tu és, brincamos juntas, saltamos a corda, comemos e dormimos juntas, é muito bom, não é?

Os pequenos olhos da menina viraram-se para o céu, o seu rosto, abria suavemente os lábios como que a querer perguntar-lhe alguma coisa.
A madrinha disfarçava não estar a aperceber-se e pelo canto do olho, via o ar triste de Emma, que quase parecia estar a chorar, tentando no céu ver se estaria a sua mãe, lembrando-se do que a madrinha dissera.

Tinha que estar ali, numa janela no céu, logo os seus olhos iriam alcançá-la, pensava para dentro a menina pequena.
E foram as duas, entraram na escola e a menina ficaram à na sala até tocar o sino, um beijo uma na outra, e irem depois as duas em direcção a casa para almoçarem.

– Esperas aqui por mim, madrinha? Esperas?
– Sim Emma, espero até se ouvir tocar o sino e tu chegares, vai lá.

E Emma foi, com o seu rosto triste, escutar com atenção as coisas das aulas, aprender as letras, as palavras, o que lhe dizia a professora.
Sentou-se e lá ficou, até o sino para a saída tocar.

O sino para a saída tocou.
As crianças correm felizes, para o braço dos pais, das mães, e Emma, encontra os braços da madrinha, os mesmos de todos os outros dias, num abraço enorme, quente, feliz também, como o abraço da Yara em sua mãe, do Pedro em seu pai, o da Emma em sua madrinha, a madrinha que é sua mãe, quando não se tem mãe, e Emma sabe que não tem mãe, como os outros meninos, por isso é triste, mas sabe que amar é importante e termos quem nos ame é muito bom. Emma tem a madrinha que passou a ser a mãe que ela perdera desde que a guerra de si a tirara.
As duas seguem rumo a casa, debaixo de um sol imenso, no calor da cidade linda, onde Emma vive com a madrinha que é a mãe, e Emma entende, a cada dia que passa, que não tem mãe, mas tem a madrinha, que é a mãe, e cresce, e vai ser feliz, a menina que não tem mãe.

– Sabes madrinha, a professora disse que há muitos meninos que ficaram sem mãe, como eu, como tu disseste, sabes, a guerra é uma coisa muito má, mata as pessoas e as crianças ficam sozinhas, sem pai, sem mãe, como eu fiquei, sabes madrinha? E eu disse-lhe: não tenho a mamã que foi para o céu e fiquei com a minha madrinha, a quem a mamã pediu para cuidar de mim, e ela gosta de mim. A professora disse que a vida anda muito depressa, sabes, sempre, e eu vou ficar crescida como tu madrinha, e ser uma senhora e não vou ter medo de nada, vou estudar muito, e ser uma menina linda, e sou, não sou madrinha?
– Sim meu amor, esta é a nossa terra, onde nascemos, onde nasceste, onde a guerra matou muitas mamãs, papás, há muitos meninos como, tu sabes Ema? E vão ser como tu, muito fortes para crescer e serem um dia pessoas importantes, pessoas que vão governar, ensinar, educar, e não vamos ter guerra nunca mais, e não vemos ter medo nunca mais.

A madrinha ouviu tudo o que a menina dizia, sentiu tudo como se fosse ela a viver toda a dor de uma menina pequena, de tranças, uma de cada lado da cabeça, não muito longas, mas muito lindas, ela gosta tanto das suas tranças como a madrinha gosta dela. A Emma ia crescendo, estava a ficar uma menina grande, obediente, fazia tudo o que a madrinha lhe pedia, estudava, fazia os deveres, ajudava a madrinha a arrumar a cozinha depois do jantar, brincava um bocadinho até o sono chegar, pois, ia levantar-se muito cedo no dia seguinte, para ver de novo um sol brilhante, um céu azul, onde dorme em paz a mamã, que a guerra lhe tirou.

– Vamos fazer um soninho, Ema, vamos?
– Sim madrinha, vamos.

E foram, até de novo o novo dia.

A menina que andava sempre triste, não mais é uma menina triste, sabe que a mamã está no céu e olha sempre por ela, a madrinha está sempre perto.

A menina cresceu e entendeu.

Nunca mais a menina acordou triste.

FIM

Vítor Burity da Silva

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