Esta é a história de um hipopótamo com soluços e de um elefante com cócegas. Mas não pensem que é uma história infantil. Ou talvez seja. É muito difícil separar o verde da verdura. Quando a contei a mim próprio coloquei-a na categoria de fábula moderna e liberal. Mas essas classificações não interessam nada. O que interessa é que tanto o hipopótamo como o elefante nasceram em África, à esquina de um acaso e num dia de poeiras vermelhas, num parque que dá pelo nome de Gorongosa. Nasceram no mesmo dia, mas longe um do outro.
A infância deles decorreu de forma simples e despreocupada. Ao chegarem à idade de tomar decisões na vida resolveram procurar emprego no zoo de uma grande cidade. De África todos emigram e eles não queriam ser exceção. Tinham ouvido falar na América, como sendo a terra de todas as promessas, as cumpridas e as outras. Por isso, nem pensaram duas vezes. A verdade é que tendo nascido ambos na Gorongosa não se conheciam. Apenas durante a viagem tiveram essa oportunidade. Uma oportunidade que deu para ficarem amigos para sempre, que é o verdadeiro espírito da amizade.
De África para a América a distância não é grande, embora seja sempre a subir. No caso deles, foi a distância que levou um hipopótamo a descobrir que tinha soluços e um elefante a ficar minado por crises de cócegas. Perceberam? Nem eu. Mas com o tempo lá iremos.
— O que vais fazer para a América? — perguntou o hipopótamo, que se chamava Belarmino Perna Curta, no intervalo de uma crise de soluços.
— Vou à conquista da felicidade — respondeu o elefante, que dava pelo nome de Carlinhos Tromba Grande, enquanto descansava de um ataque de cócegas.
— A felicidade conquista-se? — tornou o primeiro.
— Dizem que sim. Mas não sei como. Se for com a tromba podem contar comigo. De resto… — respondeu o elefante.
— Nisso estás em vantagem. Tromba não te falta.
— Também me disseram que posso ser guarda-costas ou porteiro numa discoteca. Parece que gostam de tipos grandes e trombudos.
— Outra vantagem para ti — assegurou Belarmino Perna Curta.
— E tu, o que pensas fazer?
— Bom, ao certo não sei. Disseram-me que na América se pode fazer tudo. Há oportunidades para todos. Podemos divertir-nos, trabalhar, estudar, sei lá que mais.
— Na América os animais também estudam?
— Dizem que sim. Até os burros vão à escola.
— Deve ser um grande país! — imaginou Carlinhos Tromba Grande.
— E tu não sabes o melhor… É de espantar!
— O que é? Conta.
— Disseram-me que na América as flores nascem devagarinho, às três da tarde.
— Não acredito! Quem te contou isso?
— Foi um urso poeta.
— Bom, os poetas às vezes dizem coisas difíceis de acreditar.
— Mas na América tudo é possível, não é?
— Parece que sim.
A conversa desenrolava-se com facilidade entre os dois. Sobretudo, quando se encontravam à beira da piscina do navio num momento de lazer. Era a felicidade completa. Ou quase. Sentiam-se como se estivessem em casa, nas margens de um rio ou de uma lagoa, tranquilamente a conversar. Porque ao contrário do que é corrente hoje em dia, em viagens transoceânicas, não utilizavam o avião, mas o barco. Ambos tinham medo das alturas.
Daquele lugar próximo da piscina também podiam assistir a um pôr-do-sol idêntico aos de África. Tudo isso aprofundava a amizade. Tinham tempo de sobra para conversar. Os únicos problemas eram os soluços e as cócegas. Muito desagradável e cansativo. Quando menos esperavam declaravam-se os ataques de soluços e as crises de cócegas.
— O que será que nos espera na América? — questionou Carlinhos Tromba Grande, sem esconder alguma ansiedade.
— Só pode ser um grande futuro — considerou Belarmino Perna Curta. — Disseram-me que na América é tudo em grande. Os animais sobem tão alto que até um gorila chamado King Kong conseguiu aparecer no topo de um arranha-céus. Ouviste falar?
— Sim, tenho uma vaga ideia. Mas isso foi há muito tempo. Agora como será? — tornou Carlinhos Tromba Grande.
— Há-de ser ainda melhor — respondeu Belarmino Perna Curta, sempre optimista e esperançoso. — Anseio pelo dia em que possa ver as flores nascerem devagarinho, às três da tarde. Deve ser fabuloso. Em África não há nada disso.
— Pois não, é tudo mais natural… — respondeu o amigo, um tanto distraído.
— Será que lá têm cenouras? Adoro mastigar molhos de cenouras, calmamente — volveu Belarmino Perna Curta.
— Cenouras? Deve haver. Na América há de tudo. Se há hambúrgueres aos molhos também tem de haver molhos de cenouras. E também deve haver rebentos de acácia. Gosto muito de rebentos de acácia. É um manjar dos deuses — disse Carlinhos Tromba Grande.
A viagem foi decorrendo sem novidade. Os dois amigos levavam o dia na conversa e a tomar banhos na piscina do navio. Belarmino Perna Curta queixou-se de não terem um pouco de lama para se espojarem. Era preferível àquelas espreguiçadeiras de lona muito desconfortáveis. Mas não se podia ter tudo. Carlinhos Tromba Grande concordou. Afinal, dali a dias estariam a desembarcar na América e poderiam ter o que quisessem. Molhos de cenouras, rebentos de acácia, lama para a higiene diária e água para fazer chuveirinho. Era disso que Carlinhos Tromba Grande gostava.
— Será que o trabalho no zoo vai ser muito difícil?
— Acho que não. Disseram-me que existem máquinas para tudo. E quase todas computadorizadas. Nós só temos de carregar em botões. As máquinas até pensam por nós — respondeu Belarmino Perna Curta com o seu proverbial optimismo.
— É maravilhoso!
— De qualquer modo, deve ser preciso trabalhar!
— Sim, claro. Mas a fazer o quê?
— Não sei. Por mim, quando não tiver trabalho, vou ver as flores nascerem devagarinho, às três da tarde — repetiu Belarmino experimentando um ar sonhador.
— Estou preocupado com uma coisa — interrompeu Carlinhos.
— Com o quê?
— E se me dá um ataque de cócegas quando estiver a trabalhar? Toda a gente se vai rir. Posso ser despedido.
— E eu? Posso sofrer um crise de soluços. Vai ser o diabo — considerou Belarmino, que pela primeira vez se sentiu desanimar.
— Não nos vamos preocupar antecipadamente. Na América existem com certeza médicos especialistas em doenças de soluços e de cócegas.
— És capaz de ter razão — reconheceu o amigo, de novo animado. — Em África é que não há médicos dessas especialidades.
— Em África é tudo mais natural.
— Tu achas que em África a vida podia ser tão fabulosa como dizem que é na América?
— Acho que sim. Desde que não houvesse diamantes, minas de ouro, petróleo, marfim, peles de leopardo e de crocodilo, caça grossa… Essas coisas naturais.
— Tenho de te dar razão. Nunca tinha pensado nisso.
Conversa e mais conversa, soluços e cócegas, piscina e sonhos, chegou o dia em que a América foi ter com eles ao navio. Ao largo, e antes mesmo de atracarem, puderam logo ver como ela era. Arranha-céus encostados uns aos outros e, pelo meio, umas ruas onde circulavam milhares de automóveis em filas compactas. Circular é palavra excessiva, visto que muitas vezes o trânsito estava preso em enormes filas à espera que o semáforo fechasse o olho vermelho e abrisse o olho verde. Pelas avenidas, umas criaturas pequeninas corriam de um lado para o outro muito atarefadas, sem sorrisos, com auriculares enfiados nas orelhas e ténis nos pés. E outros de pasta na mão como andam os doutores e os cobradores, que cada um nasce para o que nasce, segundo dizem os doutores — e os cobradores aceitam — porque os doutores é que sabem.
— Grande terra! — comentou Carlinhos passando a tromba pelas abas das orelhas, a coçar-se. — Mas as pessoas andam um pouco tristes, não achas?
— É porque ainda é muito cedo. Estão cheias de sono. Ninguém consegue sorrir com sono.
— Pois não. Com sono só se consegue dormir.
— Quem estará à nossa espera no cais? Disseram que vinha alguém esperar-nos.
— Vem com certeza. Eles têm tudo planeado.
— Olha, além. Está uma banda a tocar. É a comissão de boas-vindas. Welcome, parece que é como se diz na América — falou Belarmino pondo-se em bicos dos pés, imitando um bailarino em exercício de pontas.
— Estás a ver mal. É por causa de seres curto de pernas. A banda está a tocar, mas não é pela nossa chegada. É na despedida de um batalhão militar que vai para a guerra.
— Pois é, daqui não vejo bem. Mas ainda há guerras?
— De vez em quando fazem umas para entreter. Na Ásia e no Médio Oriente estão sempre a acontecer. Em África, também. Já não te lembras?
— Sim, claro. Mas a viagem foi tão boa que até me esqueci disso.
— Pois é. Viagens em paquetes de luxo fazem esquecer muitas coisas, amigo Belarmino Perna Curta.
Entretanto, desembarcaram. Ao contrário do que lhes tinham garantido ninguém os aguardava no cais. Mas alguém comentou, logo ali ao lado, que o elefante Carlinhos Tromba Grande possuía umas óptimas presas de marfim. E de imediato outro acrescentou que o hipopótamo Belarmino Perna Curta também tinha uns bons incisivos de marfim. E uma pele belíssima, muito apreciada para malas e outros apetrechos de moda.
— Têm os olhos postos em nós — sussurrou Belarmino.
— Os olhos e as ideias — replicou o amigo.
— E agora o que fazemos? Sem alguém à nossa espera, para nos guiar, tudo se complica.
— Vamos tentar saber onde fica o zoo. Não temos outro remédio.
— Estou desejoso de ver as flores nascerem devagarinho, às três da tarde.
— Sim, mas primeiro temos de dar com o zoo. Precisamos de trabalhar.
— Tens razão. O melhor é irmos à vida.
E foram. Logo seguidos por uma multidão de repórteres que acharam estranho ver desembarcar de um navio um hipopótamo e um elefante. Para mais com as presas de marfim intactas. O que é que eles estariam a fazer na América? Um dos repórteres, de gravador em punho, perguntou:
— Qual a razão da vossa vinda para a América?
Belarmino Perna Curta, que não era tolo, respondeu de imediato:
— Só revelo as razões da nossa presença se me disseram em que local nascem flores devagarinho, às três da tarde?
— Como? — ouviu-se em uníssono.
— O local onde nascem flores devagarinho, às três da tarde — repetiu ele com vivacidade.
— Nascem no alto do Empire State Building — respondeu outro repórter — um tipo que julgava ter piada — de boné enfiado na cabeça, com a pala virada para trás.
Mas os dois amigos não ligaram à provocação e foram à procura do zoo, sempre perseguidos pelos repórteres, até que se conseguiram ver livres deles. O pior é que ao fim de alguns dias de desespero não encontraram emprego. No zoo disseram-lhes que não tinham firmado qualquer contrato para exibir um hipopótamo e um elefante. Devia ser um lamentável engano. Ficaram surpreendidos. Surpreendidos e sem dinheiro. Durante dias não comeram nada, o que estava a deixar os dois amigos à beira de uma fraqueza muito perigosa. Molhos de cenouras? Rebentos de acácia? Onde encontrá-los? E como pagá-los?
— Acho que fomos enganados — reconheceu Carlinhos, a coçar-se com as unhas rentes da pata direita.
— Deve ter sido um lamentável engano — disse Belarmino, aos soluços.
— E agora, o que fazemos?
— Não sei. Mas quero ver as flores nascerem devagarinho, às três da tarde. Disso não abdico.
— Antes que o consigamos fazer morremos de fome. Já sinto uma grande lassidão no corpo.
As cócegas não desistiram de provocar Carlinhos Tromba Grande e os soluços rebentavam a meio do tórax de Belarmino Perna Curta, como pequeninas bombas de efeito retardado. Sentiam-se desanimados, enervados, esfomeados, cansados. Foi então que surgiu um homem alto, enfiado nuns calções, envergando uma t-shirt onde estava escrita a frase GOD SAVE AMERICA. Na boca apertava um enorme charuto e na cabeça usava um chapéu de abas, do tipo cowboy. Ao ver os dois amigos, um atormentado com os soluços e o outro desesperado com a coceira, pareceu ter compaixão deles. Quis saber o que andavam a fazer. Depois de escutar as explicações apresentadas pelos dois amigos, concluiu que a presença deles naquele local só podia ter sido um lamentável engano. A América estava cheia de lamentáveis enganos, acrescentou com um ar pesaroso, substituindo a mastigação do charuto por uma mão cheia de pipocas que retirava de um enorme cartucho. Cheio de boa vontade propôs-lhes um negócio.
— Sou um homem muito rico. Tenho muitas propriedades e dois netos que precisam de distracção. Eles adoram animais e há muito que me pedem um elefante e um hipopótamo para brincarem. Quando souberem que um de vocês tem cócegas e, o outro, soluços, ainda vão adorar mais. Ofereço-vos cama, comida, roupa lavada e passo-vos um cheque de centenas de dólares no final de cada mês. Aceitam?
Os dois amigos entreolharam-se. Pediram desculpa para trocarem umas palavras antes de darem uma resposta definitiva. Belarmino Perna Curta perguntou ao americano:
— Têm molhos de cenouras?
— Às carradas!
— E rebentos de acácia? — foi a vez de Carlinhos Tromba Grande perguntar.
— Às toneladas!
— Eu não te disse? Aqui na América é tudo em grande — sussurrou Belarmino.
— Aceitamos! Mas com uma condição: queremos uns dias de férias para ir ver as flores nascerem devagarinho, às três da tarde.
— Como?
— Uns dias de férias para ver as flores nascerem devagarinho, às três da tarde… Apre!
— Ah! sim, com certeza! — concordou o homem com um grande sorriso, que o charuto incendiava.
Felizes com a oportunidade surgida, os dois amigos seguiram o homem de charuto, que usava chapéu à cowboy e vestia calções, que era muito rico e tinha dois netos que queriam brincar com um elefante e um hipopótamo. Ao fim do dia chegaram ao rancho e logo constataram que era maior que alguns países. Após tomarem um revigorante banho, comerem carradas de molhos de cenouras e toneladas de rebentos de acácia, os dois amigos adormeceram, cansados, mas felizes. Belarmino Perna Curta sonhou com as flores que nasciam devagarinho, às três da tarde e que ele nunca tinha visto. Carlinhos Tromba Grande não se lembrava de ter sonhado, tal era o seu cansaço. Do que não tinham dúvidas é que ao acordarem, pela manhã, nenhum deles tinha as presas de marfim. Sentiam que as suas bocas não lhes pertenciam. Era com se fossem um pedaço de cortiça. Uma sensação estranha. Muito estranha. Na sua frente, entretanto, apareceu o homem do charuto, com um sorriso tão grande na cara que ofuscava o sol. Parecia que todas as vitórias do mundo eram suas.
— Então, dormiram bem?
— Dormimos. Dormimos muito bem. A sua casa é um hotel de luxo. Mas onde estão as nossas presas de marfim?
— As presas? Quais presas? Ah, sim, pois claro. Que será feito delas? Se calhar foram assaltados durante a noite. Andam por aí bandos de malfeitores. Sugiro que contratem dois guarda-costas. E um detective particular para investigar o paradeiro das vossas presas. Por acaso, conheço pessoal muito habilitado. Se tiverem interessados não se acanhem. Estou à vossa disposição. Bom, mas aquilo que vos queria dizer é o seguinte: afinal prescindo dos vossos serviços. Os meus netos agora preferem brincar com uma águia e um puma. Sabem como são as crianças… Mudam de ideias a toda a hora.
Os dois amigos não queriam acreditar no que ouviam.
— E agora, o que vamos fazer?
— Não se preocupem. Trabalho é o que não falta na América!
— Já agora pode dizer-nos onde nascem as flores devagarinho, às três da tarde? — insistiu Belarmino com o olhar mais desanimado da sua vida.
— Como? Ah! sim, as flores… claro. Bem, isso é tudo publicidade, meus amigos! Tudo publicidade! — exclamou, a sorrir com um dente de ouro e o charuto na boca.
— Deve ter sido um lamentável engano — suspirou Carlinhos.
— Sim, um lamentável engano — concordou Belarmino.
António Garcia Barreto
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