ONTEM
Antigamente, quando havia aqueles colossais guarda-vestidos que ocupavam uma parede inteira dum quarto de dormir, enormes, compactos, maciços, sérios e sisudos, a vida decorria serenamente sobressaltada cheia de segredos escondidos e silenciosos, a coberto de paredes de madeira perfumada. De boa madeira. Esses móveis de ar carrancudo continham, geralmente, do lado esquerdo os fatos do senhor e do lado direito, os vestidos e casacos das senhoras. Nas casas mais abastadas, com mais divisões, havia uma destinada a albergar esses colossos e então, um inteirinho era para o senhor e o outro, para a roupinha da senhora.
Dizia eu que os segredos que esses monstros guardavam eram tesouros inimagináveis que punham em risco permanente as vidas regaladas, confortáveis e bem alimentadas dos cavalheiros que lá guardavam as suas indumentárias: as calças, cada par em seu cabide, os fatos completos ou simplesmente as casacas. Por debaixo destas sombras sem corpo arrumava-se os vários pares de sapatos e botins. Chapéus à parte.
Cada casaca tinha pelo menos quatro bolsos, dois por fora e dois por dentro. Quatro bolsos, quatro abrigos, quatro cantos de cotão, muito amor e algodão!
E como eram ardilosos e secretos esses quatro bolsos! Tanto amor e sedução, tanto caso amarrotado em bolinhas de papel escondidas na escuridão mais profunda de qualquer casaco e seus bolsos cosipados.
Chegava então o dia em que a senhora resolvia arrumar o mostrengo e com a ajuda da criadagem, limpar tudo muito bem limpo, tirar todos os fatos, desarrumar os sapatos, soltar do alto os chapéus e de repente, ai! ai! ai! soltava-se a bolinha de papel amarrotado, escapulia-se, rolava pelo chão, escondia-se em vão debaixo dum qualquer tapete sob o olhar precavido e sempre atento da dona da casa, também dona dum certo coração. De seguida, ela dobrava o seu corpo delicado e pouco habituado a torturas inesperadas e com os dedinhos em pinça, cuidadosamente, conseguia apanhar a bolinha de papel. Depois, cerrava os cortinados para que nenhum olhar indiscreto do prédio ali da frente a visse, sentava-se na beira da cama, mandava a criadagem sair do quarto e devagar, muito devagar e sem ruído abria a bolinha de papel.
“Amo-te, amo¬-te mais que a própria vida” – eram estas as primeiras palavras que se podia ler naquele amargo papel e com alguma dificuldade pois a tinta permanente, de permanente não tinha nada. “Espero-te logo ao fim da tarde no sítio do costume. Até lá, beijo-te com desespero e amor, ó meu anjo, ó meu amigo!”
Como é que cabem tantas palavras encavalitadas num quadradito daqueles é que não se consegue perceber. Agora a senhora mal consegue respirar. Levanta-se agarrada à colcha, chama a criadagem, dá-lhe uma fúria, atira com os fatos todos para o meio do chão, lança todos os sapatos, um por um, pela janela fora, desata aos gritos e sem conseguir conter-se solta uivos duma dor desenganada. Sem saber o que fazer, se continuar a uivar, se secar as lágrimas, se abandonar o lar, ou simplesmente fingir que nada se passa. Apanha, então, a bolinha de papel e torna a amarfanhá-la entre os dedos. Manda colocar os fatos e toda a roupa na colossal caverna de aromática madeira. Hesita entre deitar fora a bola de papel ou tornar a pô-la no mesmo bolso donde caíra.
Toda a vida depende agora dum bolso num certo guarda-vestidos.
HOJE
Um sinal que pica como um alfinete, um ruidozinho equilibrado e certeiro, insistente, teimoso, uma maquiavélica manchita sonora que fica gravada. Um pequeno ecrã esverdeado que se agita e treme e vibra, que chama a atenção nas alturas mais incómodas, um sinal, um sorriso ou uma lágrima impossível de fugir, impossível ignorar.
Caiu mais uma mensagem no telemóvel. O telemóvel esquecido. O perigoso telemóvel. Assustador. Encostado ali ao canto, em cima daquela mesa, onde está o telemóvel? não encontro o telemóvel! que diabo, onde raios o telemóvel…
O som vem de dentro dum roupeiro.
Ele a trabalhar.
Ela em dia de folga.
Limpezas. Hoje é dia do roupeiro!!
E de repente tudo vibra, o chão estremece, sol escuro já não aquece, alma negra, negra alma, mais os jeans pendurados, é som que vibra abafado e aparece o telemóvel, sem saber-se porque sim nem porque não, ali de repente cai e sendo assim, assim sendo, logo se lhe deita a mão e com as pontas dos dedos, afagando devagar, o ecrã muda de cor e a vida corre num esgar, o medo vai de espreitar e o que se vê afinal? o roupeiro é temporal, os jeans são vendaval, “amor vem, quero-te tanto, amor vem ver que te espero lá no sítio do costume…”
Maldição, ai maldição! Vai-te embora ó meu macaco, não posso ver-te outra vez…
Ou como um pequeno objecto consegue estilhaçar toda uma grande vidraça e esmigalhar-se no empedrado do passeio.
Nem mentira nem verdade. Mensagens. Muitas mensagens.
Ainda ontem em papel amarrotado. Hoje ainda, em pequeno ecrã esfumado.
CRISTINA CARVALHO
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