Era no Inverno que ela floria. No Inverno, quando o frio empurrava as mulheres para dentro das casas, para dentro das vidas, a juntarem pedacinhos de lã, pedacinhos de lembranças. No tempo em que o vento se esgueirava pelas frinchas das portas, pelo buraco da chaminé, e a chuva alagava o pátio, alagava as meias dos caminhantes. No tempo em que a chama do candeeiro se apagava quando a porta do quintal se escancarava. O tempo das grandes noites, dos dias escuros e das frieiras a magoarem os dedos. Era esse o tempo em que a menina vivia de lume, vivia no lume, era o lume. No banquinho de madeira, esperava pelos carvões que haveriam de se deitar na braseira de cobre. Vermelhos os do centro, negros os que em redor se amontoavam, aguardando a sua vez de serem incêndio. Ali ficava a menina, o queixo nas mãozitas, os cotovelos nos joelhos, em encaixe perfeito, equilíbrio e conforto. Era o seu tempo de florir, os olhos presos no mundo ardente dos carvões. Na cabeça nasciam histórias da cidade de lume, com as suas ruas povoadas de pequeninos seres de lume que se moviam atarefados, num sem-fim de subidas, descidas, avanços, recuos, como quem vive, mesmo sem lume. Quase dormente, prendia-se nas histórias dos seus homenzinhos de lume, ou mulherzinhas, que eram iguais, de tanta luz, de tanto brilho. Quando os olhos se cansavam de serem flores de lume, o brilho da cidade esmorecia, acalmava, abrandava, desmaiava, e os olhos fechavam-se, docemente, como adormecem as flores. Amanhã voltaria, o queixo nas mãozitas, os carvões acesos, os homenzinhos na cidade, numa azáfama, as histórias a começarem na cabeça da menina da cidade de lume
Era assim no Inverno.
Licínia Quitério, em DISCO RÍGIDO, 2º. Volume, a publicar em 2015
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