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Parem as Máquinas! – Gonçalo Pereira Rosa

Este é um país que, no mínimo, merecia ser inventado. Não admira que, frequentemente, os jornalistas, com brio literário e profusa imaginação, tenham chamado a si essa tarefa.

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Neste livro, iniciamos uma viagem aos bastidores do jornalismo português, espelho fiel da forma como o país se revê ou encara a maior parte dos acontecimentos desde o fim do século XIX até aos dias de hoje. A imprensa sempre se pautou por uma escrita cuidada e de fino recorte literário e os seus jornalistas ousaram desafiar o cinzentismo de um país onde nada acontecia. Não poucas vezes ludibriaram a censura com inteligência e arrojo, mas também caíram em algumas esparrelas.

Demonstraram carater e coragem física e, dando uso ao proverbial desenrascanço português, conseguiram reportagens memoráveis. Como Urbano Carrasco na erupção do vulcão dos Capelinhos ou a foto que Eduardo Gageiro tirou ao embarque dos reféns Israelitas, guiados pelos raptores palestinianos, no helicóptero que os aguardava na aldeia olímpica de Munique. O próprio Urbano Carrasco ousaria, em pleno tribunal militar, sair em defesa do general Vassalo e Silva, último chefe militar da Índia portuguesa, que Salazar pretendia ver severamente castigado por não ter resistido, até à morte, ao exército “invasor” da União Indiana.

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Alguns crimes inventados e outras liberdades criativas fizeram as primeiras páginas dos jornais, para gozo de alguns e desgraça de outros. Mas os tempos nunca foram fáceis. Quando o Jornal do Fundão fechou a sua edição, já aprovada pela censura, ninguém tinha dado conta de que o recém-premiado escritor Luandino Vieira era um oposicionista ao regime, preso no Tarrafal. O jornal foi encerrado e o descuidado censor punido.

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O aprumo literário sempre fez parte do métier. Retiro este apontamento, da notícia do enterro do Rei D. Carlos e do seu filho D. Luís Felipe, assassinados no Terreiro do Paço em Fevereiro de 1908: Apenas se escutou o batucar da terra sobre as tampas dos caixões num reboar sinistro, como se fossem as salvas devidas àqueles corpos enterrados no mistério. Um pendor ficcionista e dramático também deu cor a alguns relatos, como nesta tirada de Reinaldo Ferreira (o Repórter X), sobre o seu pretenso encontro com Mata-Hari: Foi numa dessas manhãs de Lisboa em que o nevoeiro espiritualiza a casaria e nimba de cinza a paisagem, transformando em fumo o hálito dos homens… Ou ainda, numa nota de irreverente humor, esta descrição do aviador norte-americano Charles Lindbergh, da autoria de Norberto Lopes: É alto como um poste e excessivamente magro. Acusa uma estrutura fina de ave pernalta.

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O leitor encontra neste livro muitos episódios que marcaram o jornalismo português, dos mais caricatos, heroicos ou insólitos às grandes gafes, como o relato de uma reunião do Conselho da Revolução que nunca chegou a existir. Termino recorrendo às palavras de António Ferro, o maior propagandista do regime de Salazar, que ao dar por concluído o seu ciclo de entrevistas ao ditador, usa esta tirada de antologia: E agora que já o ouvimos, cada qual para a nossa vida… Não façam barulho… Deixemo-lo trabalhar! 

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Deixemos, então, os jornalistas trabalhar.

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(publicado em Acrítico, leituras dispersas)

António Ganhão

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