Estrato 1
Ricardina levita na caduquice própria da idade. Da varanda, vejo-a sentada. Vive no inacabado e nos esquecidos. Parente deixou de ser ou mudou de grau. À mercê da obscuridade e dos cabelos brancos. Tem a memória remota discursada como uma fotografia. Nada de passado atualizado, mas passado como foi. Sem as mentiras da vontade. Nunca mais soube da lucidez. Nem na dor nem na alegria. Sentada em uma poltrona de balanço. Nela não habita uma trama linear, mas amarras e nós sorumbáticos. A degenerescência roubou-lhe o direito de assistir pessoalmente às ilustrações externas, convive com novas e estranhas vozes.
— Preciso fazer uma adaptação de William Shakespeare dentro da realidade brasileira.
O sujeito-expectador fala enquanto caminha pela calçada ao lado de Paulo Autran, o personagem delirante vestindo um casacão de tecido cru que cobre parcialmente o coturno de solas altas, lembrando um deus ou herói grego, carregando um texto em inglês debaixo do braço, a responder:
— Ninguém deveria adaptar um autor sem ler e apresentar a peça no original.
— Exagero!
Paulo Autran não responde, olha o homem de algum oco do mundo. Depois, longo silêncio, longo tempo monitorado pelo relógio de Beckett. Até uma música interromper a mudez e a caminhada.
Musicalidades. Estranhos são os sons que o nome Lindsay produz. Ela faz questão de ser chamada assim. O que é de Lindsay? Lindsay é vida. Lindsay espia o pai. Criança ainda apesar de quase adolescente. Em pé sobre um banquinho. Nas pontas dos dedos. Lindsay tem dedos de bailarina. Olhos de boneca. Lindsay planta os sons que vêm do rádio, na alma. Ela percebe que o pai viaja e vai junto. Segue as ondas sonoras como se vasculhasse a escuridão do fundo do oceano. Toca as ilhas que o pai visita como uma aventureira. Moradas existentes nas pausas da fala paterna. Nas válvulas sobre a mesa. Há murmúrios e silêncios dentro das válvulas. Do lugar de onde se ouve as vozes. O pai habitando as margens das linguagens. Lindsay também arrisca as bordas. Lindsay vê no pai outra criança. O pai não teme o erro nem alimenta a ilusão de vida eterna. Faz infinito o segundo. O banquinho balança. Não fosse a janela e a força nos braços…
(continua)
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