UM OVO DE AVESTRUZ (Como as baratas que conhecem as trilhas do escuro) Folhetim em Setenta e Seis Episódios da autoria de Carlos Pessoa Rosa. Quadragésimo Oitavo Episódio

Cena 3

Lindsay descansa na rede.

 

Desmemória 2

Se invadirem, morremos os dois, mesmo você não tendo culpa alguma. (O homem movimentando-se, agitado, com o revólver apontado para a própria cabeça, parando diante da mulher.) Esperem! Se invadirem, eu atiro, mato quantos a arma permitir. Quem chamou a polícia? Vamos! Diga! Filhos da puta! Vizinhos só servem pra isso, bisbilhotar a vida alheia. Se for para flagrar a queda do outro, melhor ainda! Deve ter sido o Jarbas, vive espiando pela fresta da janela. Vai ver tem alguma coisa com você… O sujeito não faz nada, gigolô de luxo, a mulher trabalha e ele usufrui. Além de ter casado com uma mulher rica. Não via a hora de o sogro morrer. Demorou, mas partiu. Vai ver, além de tudo, sou um corno. Só me faltava essa… Trabalhando que nem um burro enquanto a mulher esquenta o pinto do vizinho. Se não foi ele, foi sua mãe, vi quando cochichava no telefone Ele está muito mal, não sei o que vai ser daqui pra frente… Que frente? Um sujeito que não tem passado pode viver no presente ou futuro? (batem à porta, ele aproxima-se dela.) Porra! Esperem! Vou avisando, se invadirem eu mato e me mato. Não custa nada… É só apertar o gatilho… (vai até o espelho onde para e se olha) Vamos! Vamos, seu covarde! Atire! Por que esse apego à vida se nem pode dizer se foi feliz e se está bem? (vai até a mulher) Você sabe o quanto fui covarde! Não! Não vou deixar você aqui… Usufruindo depois de minha morte. Não! Vamos os dois! Nem que um siga para o céu e o outro para o inferno. Mesmo não tendo culpa alguma! Eles precisam acreditar que me matei por outra causa que não a minha própria incapacidade de viver. Dizerem na rua que o bem sucedido empresário se matou por causa da mulher é mais digno do que afirmarem que era um louco varrido. Por que pararam de bater? Pensam que me enganam! Ah! Não! É claro que não! Sei que estão aí, conheço essas técnicas para cansar o sujeito. Perdem tempo… Sem essa de conversar! Nada de papo-furado. Mato e me mato! Estou avisando, não tentem nada! (longo silêncio) Vou resolver isso… É só movimentar o dedo…

 

 (continua)

Carlos Pessoa Rosa

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