UM OVO DE AVESTRUZ (Como as baratas que conhecem as trilhas do escuro) – Folhetim em Setenta e Seis Episódios da autoria de Carlos Pessoa Rosa. Décimo-Quarto Episódio

Estrato 3

Avó transgressora. Caso com um religioso. Clementina o nome. Serviu ao frei. Ou ao rei. O espaço sacro brilhava. O ejaculado mantido em segredo. A diocese calou. Para o católico pecar é seu próprio vício. O povo apostava em uma saída divina. Uma imolação. Um filho doente. Reforçaria a ideia de pecado. Quem sabe uma gravidez tubária. Boatos. Em bares e pizzarias. Tanto Deus quanto o Diabo são criações humanas. Fruto da esquizofrenia genital. Anjo torto. Maldoror. Tantos demônios quanto anjos. Tempos depois… Clementina mãe de duas meninas. Eugênia, a mais velha; e Ricardina. Podem lhe soar conhecidos os nomes. Tradição dos avós. Escolher os nomes entre figuras literárias. Mas agora ausente e no aguardo. Nas estranhas vozes órfãs de bocas.

Pare! Ouça! Ouvir o quê? Ouça! Ouça! Ouvir o quê? Irritado, o sujeito-expectador entra na loja. Pede uma caneta e papel à balconista. Anota o diálogo e sai. Não encontra mais o Paulo Autran. Está sozinho. Amassa o papel e joga em um bueiro próximo. A voz do sujeito no palco martelando na cabeça: dos bueiros sairão ares morféticos e ratazanas tudo fruto da mente humana e dos deuses enclausurados nas miragens produzidas pelas névoas em antigos portos e que não permitirão noção das horas como se tudo não passasse de desoras e os homens adormecessem mulheres e elas homens e os fetos enfeitiçados pelo mecônio sideral serão anjos barrocos e na escuridão do sol merda será água-benta mijo será pus gonocócico nas ardências ureterais do orgasmo e ouro será fel solitário nas línguas cadavéricas dos ventos e os homens olharão para o céu e para a terra em um ritual catatônico de desespero e a Terra será troço vacante na incerteza.

O que se sente ao ouvir novas sonoridades é estranheza. Mas tudo no barracão sorri. Lindsay vasculha o espaço e a mudez do pai. Lindsay pensa que um dia visitará aqueles lugares que tanto o atraem. Entrará no rádio. Seguirá o emaranhado de fios até chegar nos lábios de quem fala. Será engolida pelo outro. Conhecerá o mundo. Essa palavra que o pai ejacula a cada som diferente descoberto. E Lindsay pula da mesa vazando sons desconexos. E desaparece sem que o pai perceba. A menina mergulha no mundo, desaparece nas dobras do vento. No ar, o chiado do rádio. O olhar do pai esquadrinhando o que a mulher chama de esquisitices. Lindsay acaricia o verde e se faz formiga.

(continua)

Carlos Pessoa Rosa

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