59º episódio – O BOM LADRÃO – Folhetim em setenta e cinco episódios

O almoço, ninguém vive sem se alimentar, acho que o senhor deve saber disso. O tempo passou muito rápido. Já estava preocupada, aquele escritório está repleto de espíritos ruins, sinto quando entro para limpar, o senhor deveria se livrar daqueles livros todos, da máquina de escrever… Besteira, Amélia! Besteira? Foi ali que pegaram o senhor fora de si, havia algum espírito ruim usando seu corpo, nem sabe o trabalho que deu aos policiais… Não precisa falar Amélia, como diz, careço de saber, agora já passou, não tem mais espírito algum na casa, disso tenho certeza, sou eu e mais eu… Se for assim, pode sentar se quiser, a comida está pronta. Trata-me como um doente ou um filho… Um alívio saber que não preparara nenhum caldo verde. Gosto de pratos simples, arroz, feijão, fritas e um bife. Ótimo! Depois volto ao diário, é um modo de definir um corpo e um território para alguém perdido de memória. Já sei que fui filho único de um casal normal, singular se quiser, mas não um filho ao gosto do pai, para a mãe uma criança que vivia outras cartografias, soube que André frequentava a casa, que já não gostava dele… Amélia, a comida está uma delícia! É a fome, seu Samael, quando ela bate até prego é bom. De onde conheço Amélia? Não vou perguntar para que não me trate como mais doente ainda. Ela é bem competente, passou toda a roupa, a casa está arrumada e limpa. Depois de lavar a louça eu vou embora, volto só na outra semana… Tudo bem Amélia, você fez mais do que devia. E Amélia passou pela sineta. Voltou um tempo depois com a sacola cheia. É para o senhor não ficar sem nada em casa, tem frutas, frios, ovos… Vou dar uma volta, Amélia, tranque a porta ao sair.

Dia sem nuvem… Como pode alguém passar a infância em um bairro e não se lembrar de nada? Devo ter brincado nesta calçada, na rua, feito essas coisas que todas as crianças praticam, empinar pipa, andar de carrinho de rolimã, jogar bolinhas de vidro… Mas não conseguirei colocar meus antepassados e antigos conhecidos em seus lugares. Não conseguirei, como Lobo Antunes, colocar no pátio da escola personagens que fizeram parte de minha vida. Assim também fez Virgílio Ferreira… Esses nomes me aparecem com facilidade. Não me peçam para citar os livros. Quem sabe em outra hora, quando sem remédios. Sei que a escola do outro lado da rua era a única no bairro, fui alfabetizado nela, sei pela boca de André, não me lembro de uniforme e mochila entrando por aquele portão… Para mim, a mangueira no centro do pátio é uma desconhecida. Melhor encontrar um caixa eletrônico, preciso de dinheiro para pagar as contas recentes, há um na avenida, próximo do supermercado, onde antes funcionava um cinema. Também não me lembro, André estranha quando me diz as coisas e não obtém respostas, não posso tê-las, não me lembro no mundo descrito por ele. Como explicar-lhe que a tal cura do surto envolve a perda da memória e ver tudo em branco e preto? Não vou suportar muito tempo, a única coisa que sei me pertencer, que sempre me pertenceu, é a vontade de escrever… Aí está! Vou retirar o suficiente para pagar as despesas destes dois dias, aproveitar e completar a compra que Amélia me fez, preciso de cigarros. Uísque… Melhor passar direto, a lembrança dos choques ainda comigo, ovos, tenho alguma relação antiga com eles, alguns doces, material de limpeza… Suficiente para me ocupar um tempo, deixar a tarde escorrer, passar na padaria e pagar a dívida, olhar o canto vazio, não há ninguém, nem a mulher que encontrei ontem, pergunto dela ao caixa, não sabe me responder, melhor retornar, os ruídos da rua começam a me incomodar, há mendigos que ninguém vê em cada quarteirão, drogados esmolando trocados para manter o vício, uma mulher caída, já a vi em algum lugar, ou escrevi sobre ela, não me lembro, ao lado um cachorro com uma corda prendendo-o pelo pescoço ao portão de uma casa abandonada. O apito… Uma multidão sai da fábrica como se fugindo de um presídio, um burburinho ensurdecedor… Lembra-me imagem de algum filme. Protejo-me caminhando próximo da parede, vejo rostos, olhares, braços, pernas… A porta. O leão no frontão. O limpa-pés. Por que me apego à ideia de um sem barro? A chave… Agito a mão dentro do bolso, aqui está… Duas voltas e destrava. Fecho a porta rapidamente e jogo meu corpo sobre ela. Suspiro. Não suporto mais… O longo corredor a minha frente. Trancar a porta e colocar a chave no prego. Deixar a compra sobre a mesa. Ir ao quintal. Preciso plantar algo, romper com a monotonia desse cimento. Aqui havia um pé jabuticaba, está no diário, onde eu brincava. Talvez deva plantar uma jabuticabeira…

 

(continua)

Carlos Pessoa Rosa

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