54º episódio – O BOM LADRÃO – Folhetim em setenta e cinco episódios

Amélia deu um jeito no dia seguinte à internação, depois não abrimos mais a casa, me disse ter encontrado fezes de rato, se quiser arranjo um gato ou coloco veneno. Melhor a segunda opção. Mais alguns dias e estará tudo em ordem. Olho para aquele sujeito, que não me lembro parte de meu passado, cheio de dúvidas, Estará tudo bem para quem? Dentro de alguns dias quero minha insanidade de volta… Penso, não posso dizer. Agarro o fio onde a ruptura provocada pelo pensamento, Assim espero André! Preciso terminar o trabalho. Você não acha que essas coisas que escreve acabam com você? Como sabe o que escrevo? Desculpe-me, mas não pude evitar, havia um calhamaço sobre a mesa, ao lado da máquina, peguei para ajeitar na gaveta, mas a curiosidade foi maior, não sei como alguém pode fazer essa confusão toda com as ideias e as palavras, você complica a vida… André, eu não permiti! Eu sei, por isso peço desculpas. A literatura não me deixa doente… Quase digo que é a mediocridade reinante ao redor que me deixa adoecido, mas me calo, com seu jeito calmo o que ele quer é verificar através de meu comportamento até onde vai a tal da cura. Homem, como alguém pode conviver com todos os fantasmas, as mortes e as perversões ali contidas? Me desculpe a intromissão, mas não posso deixar de lhe dizer o que penso, como alguém pode escrever que trepou com uma morta? Seu pai não gostaria de nada disso, foi um venerável respeitadíssimo na comunidade… Por que me tenta como o diabo? Não posso entornar o caldo agora. Vou reavaliar tudo isso, André, fique tranquilo, não vou macular a imagem do velho. Melhor assim, o pessoal da loja está preocupado. O pessoal da loja? Quer dizer que leu o texto para outras pessoas? Não, apenas falei de algumas passagens… Está bem André, eu o desculpo, agora preciso ficar sozinho, estou suado, depois da sopa vou descansar, o dia foi agitado, você sabe, banco, escritórios… Para quem saiu de uma internação deve ser fácil suportar o mundo aqui fora. Não acredito que a frase saiu da boca da múmia diante de mim. Ilusão a minha, é claro que não ouviu a própria voz, apenas uma frase feita, dessas que nos chegam através de palavras mortas. E não fique zangado comigo, só penso no seu bem, somos vizinhos há anos, brincamos juntos na rua, frequentamos a mesma escola… Como pode? Eu tão diferente! Não se preocupe André… Respondo saindo do sofá, abraçando-o pelo ombro e levando-o até a porta. Acho que você não vai tomar banho de mangueira, a Amélia… A mangueira não mais ali. Devia ter percebido  a porta fechada. Não se preocupe tomo de balde. Um alívio vê-lo desaparecer na rua. Vou fechar a porta, mas Amélia não deixa, vem penteada e maquiada. Até amanhã! Amanhã ligarão a luz e a água. Bom para o senhor, agora precisa comprar uma televisão para se distrair, nunca vi casa sem TV. Então até… Fecho a porta e jogo meu corpo sobre ela. Até não sentir mais o cheiro de gente.

Quase me esqueço… Retiro a chave do bolso, coloco-a na fechadura, dou duas voltas até ouvir o ruído do trinco. Suspiro fundo. Filho de uma anta! Ler meus textos! Melhor tomar os medicamentos, está na hora. Tranco a porta, retiro a chave da fechadura e a dependuro no prego. Observo o longo corredor. Gostaria de enxergar, mas os medicamentos só me permitem olhar. Nada além do vazio e do silêncio, morada sem passado. Sigo lentamente como se arrastasse uma bola de ferro presa aos tornozelos. Paro na porta do quarto. Dos móveis, apenas o esboço. Com os remédios tudo se torna raso, bordas, não há volume, profundidade, perde-se o barroco. Logo tudo será uma escuridão só, ontem nem percebi tamanho o cansaço. Se não jogaram no lixo, tenho umas velas na gaveta do armário… Os azulejos que restam na parede da cozinha rebrilham entre as falhas cimentadas e opacas. Aqui estão… Entre ovos de barata e talheres. Melhor retirá-las, são três, uma para o banheiro, outra para o quarto e a derradeira para o escritório. Escurece rapidamente. Da janela da cozinha nada se vê, os prédios ocuparam o horizonte. O fora, nem quadrado azul… O início da noite me carrega uma agonia estranha no peito. Haverá renascimento para o homem? Um dia não mais as janelas acesas nos prédios; o som da alma. Único ruído atravessa a madrugada, vem da casa de André, parede de meio tijolo, é a televisão a alimentar insônias, raramente sinal do telefone, conversas curtas, nem os filhos suportam seu jeito abelhudo, de quem depois da aposentadoria descobriu-se vácuo, sem entusiasmo para recomeçar, apenas um entre milhões no aguardo implacável do fim, sem possibilidade de desdobramentos, que perdeu o mundo e se perdeu na possibilidade de dizer, como eu sob efeito dos medicamentos, hora de tomá-los, antes que as cores retornem, não é momento, é preciso evitar sons que alertem André, procura algum sentido a mais para continuar vivo, um entre tantos gestos inúteis que adota como salva-vidas, três comprimidos circulando no sangue até o cérebro, inundando neurônios, me mantêm enjaulado, quando vou voltar a ler estes livros que agonizam nas prateleiras? Nunca mais… O tempo que resta é para escrever, não ler, já li o suficiente, doarei os livros a alguma biblioteca, venderei a algum sebo, lugar de visita de sujeitos esquisitos, ritual nômade de quem procura uma frase perdida, algo raro ou um ultimato… Mesmo vazias, haverá rastros dos livros nestas prateleiras, como na velha Remington Rand, das escrituras, melhor me sentar na poltrona, deixar a noite enfurnar-se no escritório, não tenho dificuldade alguma para dormir, exercito todos os dias a morte, ao acordar vejo se agarro algo do último sonho, pode ser uma estrada recapeada que me leva a lugar nenhum, asas-delta sobrevoando o vale, eu a apagar registros na lousa, gritos de enclausurados na memória, mas o negro ocupando tudo, acendo a vela, chama negra e branca bruxuleante, o cheiro sem ligações aparentes, as sombras, mas nenhum fantasma, nenhuma associação com algo que poderia chamar de passado, sei que a mãe escrevia um diário, deve estar no sótão, nunca mais entrei lá, coloquei as coisas dela do jeito que deixou, nem vaga lembrança do rosto, talvez pudesse construir uma história para mim, com início, meio e fim, não me importo, ninguém se importaria comigo além da mesma atenção que dedicariam a uma sombra no chão, você pode dizer, mas que dramático, mas não digo nada disso para ser dramático, apenas relato, não carrego culpa, ao contrário, curto cada instante, os medicamentos é que mudam um pouco isso, prefiro a sonoridade da insânia, com ela é possível recriar ouvindo Apelo, Baden Pawell, com Yo Yo-Ma, os medicamentos roubam minha cinestesia, os personagens que habitam a música, mas nem pensar no choque em tempo tão curto, melhor curtir a abstinência do Ser, mesmo em branco e preto, agir sem as nascentes existentes nos sonhos, no delírio, no amor, na criação… Nada sou sem os atos falhos e os lapsos que me foram roubados pela química. Não desejo o singular a bebericar paroxetina, modo de suportar o mundo convulso, não há sentido algum em viver anestesiado ou deitado em divãs onde a assimetria de poder é fato, onde singular domina singular, referência de ritual dualístico, mas o mundo é fluxo de rio, águas nunca as mesmas, com seus duelos abstratos esquizofrênicos. Faz-se necessário procriar cartografias, retirar as palavras do uso comum…

 

(continua)

Carlos Pessoa Rosa

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