54º Episódio – Folhetim (II sequência de novelas) – O MÊNSTRUO MÁGICO DAS ORQUÍDEAS GRÁVIDAS – Folhetim em Setenta Episódios por Carlos Pessoa Rosa

Será internado tão logo não tenha mais ninguém, hoje sei que é doente, conversei com o médico, falou-me que há um componente genético em algumas psicoses, que o álcool pode desencadear surtos, mas eu estou contente que não beba mais, não vê-lo mais nos cantos, falando sozinho, diminuiu o tempo em que fica no escritório, não ficou triste com a repercussão do livro, muitas críticas perversas, mas ele acredita no que escreve, rejeitou entrevistas para defender a obra, o editor não gostou muito, disse-me dias desses que não me preocupasse com ele, que a doença faz com que viva no limite, lugar evitado por todos, daí as críticas nada elogiosas… Não seria de todo mal o momento de minha morte. Pelo menos posso pedir que Carol continue a cuidar dele. O que mais poderia desejar uma mãe que não fosse ser substituída por uma mulher tão preocupada quanto ela própria nos cuidados com um filho? Mesmo sendo um homem… Para a mãe, o filho nunca cresce. Há culpa nisso, sei bem, sem irmão, um pai ausente, a mãe distante do que desejaria como família… Agora o anúncio do fim, hoje os médicos não omitem nada. Melhor assim, podemos nos preparar, e aos próximos… Não vou comunicar ainda, aguardarei os acontecimentos, é melhor, não vou roubar o momento feliz em que os dois estão vivendo.

Estranho ouvir histórias sobre você e não encaixar-se no lido. Como se fosse outra pessoa com nome Samael, que viveu nesta casa, eu sendo um impostor, um não-eu, clone sem passado, apenas o corpo o mesmo, daí acharem tratar-se do antigo morador, mas eu no não-lugar, no não-tempo, mesmo com a jabuticabeira no quintal, a sensação de déjà vu, estranho a mim mesmo, e não há mais nada escrito no diário, a morte é uma folha de papel em branco, não me oferece muito sobre Clara, de minha pessoa apenas rastros, impressões de mãe, mulher, de alguém que não me lembro, são os medicamentos, não há dúvida, mas suportarei até amanhã, quem chegou aqui não perde em esperar, há a vantagem de Amélia estar presente, ela está muito feliz com meu tratamento, foi o que deixou escapar dia desses, o André também não se preocupou mais comigo, a assistente social terá também boa impressão, os profissionais são rasos como os tempos, nada sensíveis, não dariam um passo na vida sem aplicar o tal check-list, prática mais próxima dos símios, mas o homem não tem mais neurônios que eles, mais empáfia talvez, insuportável viver essa mentira diária, rotina de águas empoçadas, de palavras engessadas, de discursos estéreis, de preconceitos delirantes… Amanhã, amanhã não tomarei mais os medicamentos… Não! Antes preciso dispensar Amélia sem que ela desconfie de nada. Provavelmente André irá me sondar, terei de arranjar uma justificativa convincente, não quero que acenda alguma luz vermelha em sua mente. Melhor sair e resolver os problemas…

Retorno à tarde. Há um grupo de pessoas na porta da casa do André. A porta aberta. Há um cheiro horrível vindo de dentro. Os bombeiros invadiram a casa. Dizem que morto… Só agora me dou conta, não ouço nada vindo dali há dias. Pode parecer egoísta, mas para mim um problema a menos. Agora será mais fácil me livrar de Amélia, não terá com quem bater os dentes. André era o único por aqui que conhecia um pouco a vida privada dos vizinhos. O que sobrou tem o discurso neoliberal: cada um por si, independentemente do meio, Deus para os miseráveis. Podem crer que sou o menos egoísta e frio no picadeiro, ainda acredito que a escritura poderá um dia modificar essa merda toda… Quero de volta minha insânia, só ela me preenche e devolve o que me pertence.

 

Capítulo X: As putas fingem como os poetas

Preciso pedir licença para a multidão que se aglomera diante da porta de André e invade a entrada de casa. Pego a chave do bolso do casaco com alguma dificuldade. Enfio-a na fechadura. Dou duas voltas. Não há necessidade de usar as outras pessoas como espelho, como todos fazem, eu me vasculho e me farejo como o gato a entrada de uma toca de rato. Tenho sempre diante de mim um espelho que me reflete continuamente, não há como fugir no comportamento do outro, quando digo algo, sou eu quem fala, quando crítico alguma ação, falo de mim mesmo; de mim e do outro de mim… Somos apenas o duplo de um mesmo, mas cada qual com seu duplo, infinitamente. Sinto-me feliz, ninguém pode olhar e ver meu rosto agora, chapado na porta, destoa da maioria, a morte não me surpreende mais, não esperava a de André, mas veio em boa hora, acredito que ele pensaria o mesmo fosse eu o defunto. Ruído seco… A morte é um ruído seco, um estalido, um destravar de fechadura, retiro a chave, abro a porta e, sem acender a luz, entro. Jogo o corpo sobre a porta que se fecha num estrondo. Adentro a escuridão do corredor a ver fantasmas, mas eles não estão. Quando voltarão? Gesticulo como esportista diante da vitória, jogo o braço para o alto, mãos fechadas, digo um Yes!, atravesso o corredor de olhos fechados, ouvidos na estranha cantoria sussurrada pela boca, Fred Stern, “Dançando na Chuva”. Há quanto tempo meu corpo não dança? Há quanto tempo alma dentro de corpo em formol? Os medicamentos enrijecem os movimentos, apenas isso, os pensamentos continuam na velocidade da luz. Ao ver um barco na calmaria do mar, não imaginamos que em seu interior pode caber toda a “Divina Comédia”. Não é o que acontece nas viagens de transatlântico? Os viajantes deixam um backup no porto e assumem um ritornelo orgíaco, de fundos de saco rompidos, de espermas escorrendo nos declives das ondas, da paixão esotérica por um ídolo cadente, do pó na narina, do orgasmo ejaculado na direção das sereias. Assim começo a me sentir melhor… Onde os deixei? Ninguém responde. Mas logo esta casa estará cheia, haverá aqui uma família, quase uma família, o pai não, que fique no túmulo para sempre. Para sempre… Há um livro que carrega esse nome. Talvez Virgílio Ferreira. Ah! Aqui estão! Lixo?! Não, melhor no banheiro, a descarga não deixa indícios… Doutores do desprazer, aqui vão suas pílulas mágicas! Pronto! Agora é aguardar as visitas e o retorno das cores… Demorará um pouco até tudo ficar no meu normal… O dia deixou-me cansado. Melhor dormir. Descansar. Preciso me cuidar para que Amélia não descubra, a bandida é muito perceptiva, a pobreza aproxima mais os despossuídos da loucura, fruto do sofrimento pela falta e incerteza, atrai mais as emoções que desintegram o espírito, como o ódio e o desejo de morrer e matar. Amanhã me livro da empregada.

 

(continua)

Carlos Pessoa Rosa

Share
Published by
Carlos Pessoa Rosa

Recent Posts

Gonçalo M. Tavares vence Prémio Literário Vergílio Ferreira 2018

Gonçalo M. Tavares venceu o Prémio Literário Vergílio Ferreira devido à "originalidade da sua obra…

7 anos ago

Gente Lusitana | Paulo Fonseca

Cornucópia rosada de carne palpitante… com neurónios, comandada puro arbítrio, caminhante… Permeável, errante… de louca,…

7 anos ago

Marcos Barrero, poeta de coração paulistano | Adelto Gonçalves

I A exemplo do que Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) disse do poeta argentino Rodolfo…

7 anos ago

Em homenagem a Cassiano Nunes | Adelto Gonçalves

                                                    I         Primeiro de uma série de cinco volumes, Poesia - Obra Reunida (Brasília: Universidade de Brasília/Thesaurus Editora,…

7 anos ago

Desvão de Almas, Miicrocontos, Editora Penalux, SP | Silas Corrêa Leite

O professor Silas Corrêa Leite, jornalista comunitário, conselheiro diplomado em direitos humanos, ciberpoeta e blogueiro…

7 anos ago