53º episódio – O BOM LADRÃO – Folhetim em setenta e cinco episódios

Fico confuso quanto ao rumo a tomar, foi assim a vida toda… Não quero para mim o que escrito na pausa urbana, a cegueira de Saramago não me interessa, só me aparece nesses momentos em que uso os medicamentos, eles me aproximam da multidão acéfala, de corpos com as vísceras ao avesso, ruídos vindos das tripas das avenidas, tudo em branco e preto, não consigo ser um deles, tratado ou não, com os medicamentos necessito das mãos para tocar o volume das coisas, e o tempo, o que é dele, já quase duas horas na torre da igreja, eu já na dobra que me afastou do vizinho, felizmente ninguém na rua, a porta de casa aberta, a mangueira ainda bloqueando a entrada, a limpeza tem cheiro próprio, não há barro no limpa-pés, coloco a mão no bolso do casaco por hábito, a chave que me lembra a lagartixa, não sei de onde, devolvo-a ao mesmo lugar, a luz mortiça no corredor, e a voz de Amélia. De quando a lembrança? Existiram as árvores? Jabuticabas lustrosas no tronco, cascas ressequidas e pisadas no chão, a ereção, o pelo negro e a vulva rósea, a casca negra e o fruto branco, a vazar secreções, a língua saboreia secreções mucosas, e a mulher a descarregar palavras, Acho que o senhor deveria arranjar um gato ou colocar veneno, encontrei fezes de ratos no escritório, também tem traça comendo alguns livros, Amélia desviando-me de algum escrito que não sei de onde nem de quando… Como pode falar tanto! Não respondo, apenas aceno afirmativamente com a cabeça. Um dia vou montar um texto com o que sobrou da ação das traças… Obra ao acaso da fome do inseto. Quantas dúvidas no velho testamento em função da ação das traças? Assim a história, fruto da omissão de fatos, da ação da Lepima humani. E que cheiro é esse, Amélia? Foi seu André, deixou para o senhor, disse que precisa se alimentar, é uma sopa. Vizinho enxerido!

Atravesso o corredor, piso brilhando, na cozinha a torneira seca, mas o filtro cheio de água, sobre a mesa o caldo verde, as vísceras quietas, abro a geladeira, desligada, deixo a sopa onde está, Amélia no meu pé… Disse que depois acerta com o senhor. Sei disso, Amélia. Então, vou acabar o serviço. Sai na direção do quintal. Sigo para o escritório, acendo um cigarro, a Remington Rand me espiando, sempre há outro de nós a escrever, mas o meu ausente, castrado pela química… Me ajeito na poltrona de pele de carneiro, olho os cantos para ver se estão por aqui… Nada! Deixo ouvidos à mercê do vento, nenhum som além do provocado pela vassoura no quintal. Fecho os olhos na esperança de algum sinal, mas nada além de bolas brancas e negras, e a sineta… Será? Só podia ser… Diante da porta, André. Precisa de mais alguma coisa? Não, obrigado pela sopa, como foi se lembrar? Adorava vir até aqui na hora do jantar para saborear o caldo verde preparado por sua mãe… De quando? Não me lembro dele em casa dividindo a mesa. Está tudo muito vazio depois que as duas se foram… Infelizmente sua loucura por Carol não resultou em filhos… Quem é ele para falar em nome de minha vida? Sem remédios seria motivo para expulsá-lo de casa. Mas… E os seus? Por aí… Eu os tenho e não, mas os criei para a vida, estão espalhados pelo mundo. Hipócrita! Pudesse os manteria aprisionados em casa. Ninguém cuida dos filhos para entregá-los ao mundo. Não vou falar, é claro! Estaria fazendo o jogo dele que me testa para saber até onde os médicos acertaram ao me darem alta. Aguarda um tempo algo de mim, mas eu quieto… Você precisa evitar o álcool, não sabe como o encontrei, precisei chamar o médico, ele decidiu interná-lo. Suportou menos do que eu esperava… Culpa! Esses merdas alimentam-se de culpa. Não me lembro… Digo para não perceber que há algo não dito no ar.

 

(continua)

Carlos Pessoa Rosa

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