50º episódio – O BOM LADRÃO – Folhetim em setenta e cinco episódios

Melhor seguir, antes que percebam que carrego algum valor. Os escritórios do departamento de água e luz ficam próximos. Viveria sem luz, mas não sem água. Insuportável a ideia de morrer sedento; ou afogado. O excesso e a falta de água sempre me assustaram, nunca desejei ser uma escultura ressequida, muito menos uma forma amorfa. E o que fui ou sou? Não muito para uma vida. Sempre apoiado num túmulo… Estes escritórios são tumulares. A jovem me atende segundo um protocolo de perguntas, preencho um vasto questionário, pago a conta e a taxa para religarem a luz, agenda a visita do técnico para o outro dia, não consigo convencê-la a enviar alguém ainda hoje, não foi muito com a minha cara, não pintou a química do cheiro, saio e atravesso a rua na faixa de pedestres, motivo de descrição barroca para um autor como Saramago, prefiro o tiro certeiro de Lobo Antunes, de Al Berto, desta vez o protocolo usado pelo funcionário é mais simples, também o questionário. Arrisco perguntar se ligariam a água ainda hoje. O senhor acredita em milagres? Entendi… Amanhã, talvez. Saio e acendo um cigarro. Sempre trago como se fosse uma última vez. Quando nem mais a morte, o prazer não fará sentido. Saídas técnicas sempre me cansaram. Estéreis. Pessoas com o mesmo semblante, a mesma respiração, as mesmas opiniões, caminhar no mesmo, na repetitiva programação da TV… Assim o tempo não passa, afugentar possibilidade de envelhecer. Preencher com vazios a angústia e a incerteza provocadas pelo caos. Não quero escrever sobre os conflitos ou violência urbanos, desejo ouvir os pensamentos dos caracóis. Não me apetecem as algemas do esperado nem a experiência do pronto. Não quero botões nem zíperes, talvez encontre outro modo de fechar a pele ao vento. O dia em que levar uma mulher ao gozo com única palavra não haverá mais guerras. Impossibilidade ao alcance da linguagem. Mas antes preciso suspender os remédios. Estrategicamente, necessito de alguns meses… Talvez dias sejam suficientes. Retornar ao não tão claro, ao nublado da estranheza, de viver com a possibilidade da peste, quando falamos nós nos apoiamos num túmulo, e esse vazio do túmulo é o que faz a verdade da linguagem, mas ao mesmo tempo o vazio é realidade e a morte se faz. Dar nome às coisas é um gesto de negação da morte. Não exijam de mim o nome da fonte, os textos como referências são meus cacoetes, a manifestação de meu TOC, depois de morta a autoria a obra adquire vida, cada pensamento, cada ideia, cada frase, tem nome próprio, como meu nome Samael, anjo da morte, linguagem a anunciar a morte, fruto da castração imagética, mas resistência ao assassinato em série e à redundância, da água-esgoto sempre a mesma, da fuga no pó branco, do calor provocado por engenhocas capitalistas.

 

(continua)

Carlos Pessoa Rosa

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