Observo tudo ao modo de um recuperado, no hospício o gerente seria o médico, indicaria o choque elétrico e para evitá-lo o sujeito não discutiria, não reclamaria, sabe que nada restaria de absurdo em seu pensamento, tudo ficaria em branco e preto, é assim que enxergo, linhas sem fundo, o entorno preto e o miolo branco, raras são as exceções, (des)razão sem emoção, há um incomodo muito distante em meu peito, como um brotamento de pânico, mas ficou no aguardo, a solução chega com a polícia, obrigam o homem a vestir a roupa, ameaçam prendê-lo, o povo começa a vaiar os fardados, todo uniformizado detém algum poder, no último escalão estão os de terno e gravata italianos, cheios de bravatas, território de estelionatários, já é tempo em que muitos psicóticos não são mais percebidos como tal, ser ou não louco dependerá de outros referenciais, no momento o louco não é o gerente, nem o segurança, nem a polícia, mas o homem que diz que não vai sair dali enquanto não tiver seu problema resolvido. Melhor andar um pouco mais até o caixa eletrônico, cansei da cena, inputs e outputs, seres em eterno recall cerebral e corporal, silicone, lipoaspiração, botox, com suas máquinas fazedoras de tumores fantasmas, a tomografia, a ressonância, o ultrassom… Qual a dimensão dessa massa metálica, cujo fetiche maior é o telefone celular e os bonecos insuflados, a se comunicar em rede, sem corpo, sósias apenas virtuais? Há os raros a curtir a maconha orgânica e desafiar a morte, financiados por créditos públicos e música javaneza. Não sou o único, também há fila, pessoas reclamando, espero a vez sem comentários, meu único sofrimento é ver tudo sem cor, não ter os meus fantasmas presentes, as gesticulações das pessoas para mim não tem o peso da irritação e da raiva, anestesia seria melhor que os choques e os medicamentos, mas devo suportar e demonstrar sociabilidade, um ser recuperado, principalmente ao André, as assistentes sociais irão consultá-lo em algum momento do tratamento, enfim a máquina diante de mim, a rotina das senhas, fico apreensivo quando erro duas vezes, na terceira bloquearão o que me pertence, felizmente acerto. Retiro o suficiente para pagar as contas atrasadas e sobrevive; e saio. Penso em parar na praça. Há um parque próximo. Em um parque, há pássaros, gatos. Em um parque a gente não está sozinha. Mas dentro da casa a gente fica tão só que às vezes se perde. Duras… Raro me lembrar dos nomes… Fora não há portas, nem entradas ou saídas, você está dentro sempre, prisão sem esperança de fuga, quer algo mais terrível que a impossibilidade absoluta? Sem rotas, como se no canto, impotente, diante de um predador invisível e poderoso. E na casa nunca me senti só como agora ao ver essas crianças, empilhamentos de ossos, brincarem em águas empoçadas e fétidas, corpos com suas úlceras pútridas nas calçadas aguardando um trocado ou o camburão do IML, jovens aspirando droga, só eu atento, tudo em branco e preto, o que atenua um pouco a dor, o líquido que escorre das feridas não é vermelho, mas preto, e as pessoas passam desinteressadas no que enxergo e continuam seus pesadelos, só eu fora, diante de mim um exército de cegos funcionais. Na casa, sem os remédios, reencontrarei meus parceiros, o outro de mim, a velha Remington Rand, quem escreve é sempre o outro, escrever é agora o interminável, o incessante, Blanchot, não esqueço nem na insanidade, é o outro de mim com suas mensagens sutis, as intermináveis cartas enviadas aos amigos, não há leitor nessa massa amorfa e repetitiva, não, na casa não me sinto só, desejo a solidão da casa, a ameaça do fascínio, a imprudência dos delírios, onde bastam alguns passos para sair do quarto, outros tantos para sair da vida… Dentro de casa permito-me fora, fora de casa não me permitem nada, nem esperança. O parque… Pássaros e gatos… Não lugar sem intimidade, sem interior oculto, impossibilidade de dizer Eu, sem literatura… O que vou ter depois da morte? Além do nome na lápide, nada! Samael… Anunciar a morte no nome e na linguagem.
(continua)
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