48º episódio – O BOM LADRÃO – Folhetim em setenta e cinco episódios

Muda alguma coisa tantos ósticos? Não! André é mais um sujeito normal como tantos outros e que cultiva a amizade dos vizinhos, faz favores, olha de modo pedinte, já tem convênio com a funerária e terreno no cemitério, sujeito morrente, ao mesmo tempo arcaico, já não deixam que invada tanto assim as casas, conversa só na rua ou no bar, do outro lado do muro, das câmeras de segurança, dos fios eletrificados, dos cães amestrados para matar, o que frustra André, começa a transparecer nas linhas do rosto, traços por mim conhecidos, mas ele resiste à depressão, não conhece território que não o oferecido pela máquina de fazer humanóides, da escola, da família, agora acordar com casais em orgia no muro da empresa que refina o milho, saber que a polícia não virá para repreendê-los, o sexo a céu aberto e o cheiro desagradável de milho, e os lábios diante de mim, digo que vou pedir para ligarem a luz e a água, antes passar no banco para pegar o dinheiro, depois falo com você, a mão saindo do ombro, então até mais, tome cuidado com os ladrões, a calçada em movimento como esteira rolante, eu longe dali o mais rapidamente possível, sei que me observa na esperança de um indício de insânia, não sabe estar doente, então esperança no outro o surto, surto que também lhe pertence, mas não percebe, a normalidade projetiva, personagem do reality show, mas a dobra da rua, dobraduras ao infinito, tal circunvoluções cerebrais, tortuosidades infinitas, a tentativa do homem de uma lógica no caos, mas ao cair os dados todas as ocorrências são possíveis, em algum momento os seis números da mega sena podem mudar rumos, destinos, fraturar a ordem presente, como alguma bala perdida ou algum terremoto… Mas no corpo, tatuagens sem totens, pearcing sem raiz, ausência de fantasmas, lobisomens, conteúdos imagéticos… Sem medicamento sou mais um entre tantos speakers hipnotizados pela luz da telinha na sala, no quarto, no banheiro…

Caminhar lento entre sonâmbulos, seres ameaçados pelo existir, pelo desejo, pela vontade. Todos tão estranhos que sinto certo alívio. Não aceitei a família, a escola, os padrões… A subjetividade reducionista da ciência com sua falsa ideia evolucionista. Torne frágil o Estado, estaremos em um hospício a céu aberto, sem quadrado azul, sem muros, apenas estas bestas soltas a lutarem pela sobrevivência. E falta pouco… Muito pouco. Esgotada a água e a comida restará a selvageria. Mutantes apenas na tela que os engole diariamente. Lá esta o banco. Visual novo, os banqueiros enriquecem às bancadas. Há um tumulto na porta. Procuro me aproximar. Um homem de cuecas, meias e sapatos, na rotatória de vidro. Discute com o segurança. Pergunto o que há para um sujeito franzino que a tudo assiste com atenção. O homem não consegue entrar, já faz uns quinze minutos, a porta dispara o alarme, começou deixando a chave com o segurança, agora não tem além da cueca e das meias e sapatos, e ameaça tirar a cueca, diz ter prótese na perna, mas o segurança e o gerente não o deixam entrar.

 

(continua)

Carlos Pessoa Rosa

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