40º episódio – O BOM LADRÃO – Folhetim em setenta e cinco episódios

O que mais fazer aqui entre estas paredes enormes que não dar ouvidos à insânia, aceitar essa flatulência de ideias selvagens, esse temporal híbrido de palavras, esse avesso retorcido e fora de lugar? Que os homens de branco não ouçam além da linha melódica do comum, dos normais, caso contrário, ficarei mais tempo entre estes muros de pedra… Fizeram muros altos, cinzentos – esconderam a terra. Mas o quadrado azul está presente: Sempre. Não sei a autoria, a doença leva de roldão a memória, permanecem rastros, vestígios, por enraizados em terreno árido da insânia. Mas o quadrado azul sempre presente e mutável, como a tela grande do cinema, movimentos de aves e nuvens. Estamos na época de os pássaros migrarem com seus cantos roucos. Atravessam em bandos. Aqui ninguém migra além do possibilitado pelo delírio, alucinações e ilusões. O pátio está abarrotado, há disputa pelo ensolarado. As táticas curativas como as reuniões de grupos e terapia através da arte ocorrem à tarde. Como falar em arte se o pensante amordaçado pelas pílulas coloridas aviadas pelos doutores? Apenas os surtados são internados. O que parece um avanço não passa de um discurso humanista embalado em diminuição de custos pelo Estado, o que abriu os portões dos hospícios, a maioria caminha como zumbis pelas estradas, dormem nas ruas, morrem esquecidos nas macas dos hospitais. Mas a fábrica lá fora tem linha de montagem própria, a família e a escola continuam a desrespeitar a individualidade, a cobrar o retorno na pura imitação e identificação, mas é preciso esquartejar na diferença e dissolver-se na identidade para abrir-se ao estilo, todos os dias o portal vomita novos internos nas celas, muitos jovens delirantes pelo uso de drogas, cerceados em suas liberdades por muros altos e arame farpado. Para evitar fugas… Mas continuam tentando. Alguns morrem dependurados na cerca, vítimas de alucinações, quando o louco avança em territórios arcaicos com seus manjaléus, deradelfos, dicéfalos e tricéfalos, em orgia imaginária grega, e encontram as armadilhas criadas pelos guardas e funcionários. Há quatro guaritas, uma em cada ângulo do muro, mas nem sempre há guardas ali. Aqui ninguém se estranha além do instante, o território do demente é fistuloso, repetição do improvável, ilha desarvorada do caos, é estar na fenda ou apossar-se dela, mas de um modo marginal e fronteiriço a outro surto que pertence à maioria formada no ritual cuja fenda é ninho de alguma religião, filosofia ou ciência, que instrumentalizam a repetição do provável, eco que mantém o sistema e a normalidade, essa neurose possessiva e de comportamento único do convívio comum. Repetir-se e submeter-se diariamente aos trajetos do emprego, da igreja, da escola, de shopping center, aos prazeres da carne, ao consumo, diante de um mundo definido por regras e placas, mas já nem tanto, todo psicótico surta quando desaparecem as referências e o caos invade as relações, os surtos estão em cada esquina, nas balas perdidas, nas casas noturnas, nas viagens terrestres ou virtuais, no biográfico, respiro balzaquiano de personagens petrificados em hospício coletivo a céu aberto, com horizontes e lebreias, como se houvesse tempo e espaço únicos, qualquer lógica ou razão, essa poética de estrelas e astros perenes… E a cidade passa a hospício, as casas a celas, todo o resto um enorme pátio sem muros e guaritas… A tarde se prolonga como o alcançar em dor o infinito. A tarde se estende sem vibração para nada. Mulheres iguais – guardas – monotonia – cotidiano – dor: HOSPÍCIO (voltei, meu deus. Voltei.). Todos os dias retornar e acordar sem aperceber-se dentro de um surto. Talvez pela ausência de muros e guaritas. Mas há os indícios, as crianças a esmolar nos cruzamentos, moradores de rua carbonizados durante as madrugadas, os chistes políticos, a imitação nas galerias, nos jornais, nas editoras, arte como repetição do mesmo, de pensamentos sem tradução, sem pensar, nem imaginar o buraco negro de uma Maria Lopes Cançado, ou a arte de um Rosário Bispo, a doença nas fotografias da explosão provocada pelo encontro das galáxias, da imprevisibilidade além do instante, fuga… O olhar muito distante, lá longe, onde nem pássaros habitam.

 

(continua)

Carlos Pessoa Rosa

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