28º Episódio – Folhetim (II sequência de novelas) – O MÊNSTRUO MÁGICO DAS ORQUÍDEAS GRÁVIDAS – Folhetim em Setenta Episódios por Carlos Pessoa Rosa

Adiante o longo corredor no viés de um dos tempos possíveis. Frio. Faz frio. Piso forte para contaminar o silêncio. Preciso de ruídos para me sentir vivo. É assim quando estou irritado. Ser ignorado me inerva. Neste estado misturo todos os tempos, todas as imagens possíveis. Sinto vontade de urinar, o banheiro uma bagunça, mijo fraco, maldita idade que dizem ser a melhor idade, não quero perder o clima, o caminhar dos personagens, sei que a história não terá um fim, na vida real nada tem um final, melhor voltar à história, deixo as cartas sobre a mesa, acumulam-se, procuro a maleta, rio de minha distração, já não tenho mais a maleta, torço o resto do cigarro no cinzeiro, teclo, o som da sineta… Seria possível? 17h30. Só pode ser… Sempre pontual. Mantenho-me quieto. Coloca o chapéu e o casaco no cabide. Abaixa para pegar as cartas esparramadas no chão. Uma pausa para a leitura dos remetentes. Um reclamo pela luz pouca. O ruído mortiço de passos no piso. Tomo o que sobrou do uísque que há no copo. Imitamos o pai, de um modo ou de outro. Entra no escritório e acrescenta as cartas de hoje às dezenas de correspondências fechadas e que se acumulam há meses sobre a mesa. Procura algo… Os olhos do bichano entre os livros na prateleira da biblioteca. O animal pula, gira o corpo ao redor de algum fantasma e foge para a cozinha. Persevero no silêncio abismal que vem de dentro, vasculho o interior como olho de siri: 17h30, no relógio de parede.
Sozinho na cozinha… As mulheres e o gato ausentes. Pensamento no longo corredor do que foi. Criança na teimosia do ovo e a mãe em estalada possibilidade de perda por inanição: Ovo outra vez?! Nem imaginar que a ilhota amarela no oceano nácar excitava o verme erótico ainda sem endereçamentos na geografia corpórea. Mais esse lado literário que sempre negou. Ainda pureza, pernicioso é o futuro, construído na necessidade de expurgar uma culpa que nunca lhe pertenceu, o garfo acarinha fronteiras até ruptura liberalizante de magma sorvida em gozo pelo miolo de pão, boca em orgasmo salivar, sêmen-semente do vindouro, curtido na perversidade de fêmea cativa em fantasmas de finalidades. No entreato digestório, fome saciada, os dentes expunham-se à rua, aos movimentos barrocos do vento, cada vez mais distante os ruídos de louça; e a perversidade. Agora, mais ovos aninhados na geladeira. Mexidos dão menos trabalho. Não se faz mais necessária a poesia do magma. É para saciar a fome. Modo animal de adulto banido das extensões fluídas da origem. Misturar clara e gema, gesto masturbatório, o menino na câimbra reinante no momento do gozo, assuntando a face materna na possibilidade de um fim, enclausurado nos mistérios do silêncio e das paredes. Nascia ali um enamorar perverso, curtido nos deslumbramentos assimétricos das desoras.
 
(continua)

Carlos Pessoa Rosa

Share
Published by
Carlos Pessoa Rosa

Recent Posts

Gonçalo M. Tavares vence Prémio Literário Vergílio Ferreira 2018

Gonçalo M. Tavares venceu o Prémio Literário Vergílio Ferreira devido à "originalidade da sua obra…

7 anos ago

Gente Lusitana | Paulo Fonseca

Cornucópia rosada de carne palpitante… com neurónios, comandada puro arbítrio, caminhante… Permeável, errante… de louca,…

7 anos ago