Deixo que esfrie um pouco. Do outro lado da mesa, a criança pega o ovo que estala no caldo quente, a mãe observa a reação do pai, mas este perdido no noticiário do jornal, há dias que ele chega assim ignorando a família, a morte de tio Anastácio contrariou-o, expôs a família toda, cobrou de minha mãe. Um pouco mais, apenas um pouco mais… Havia o lado bom quando ficava assim. Clara, pegue um ovo! Para quê? E não me chamo Clara, já disse que não gosto dessas confusões de nomes, Clara era o nome de sua mãe. Desculpe-me Carol, me dê o ovo, vou estalá-lo no caldo, como fazia quando menino. Tanto capricho e agora você com essa ideia de colocar ovo na sopa! Nessa hora Carol está sendo Clara. No ar, o cheiro de alho e cebola; de sangue e da mãe. Carol preocupada com o desinteresse do marido, com o meu, mas Carol não mais, o romper lento com a vida, não sabe como me ajudar, as depressões cada vez mais duradoras e frequentes, a gema do ovo flutuando no caldo verde, a clara esbranquiçada, o calor da sopa no rosto, a fumaça fugindo dali, quase imperceptível, o menino querendo virar fumaça, esparramar-se no teto, centenas de tentáculos, sair pelas fissuras abertas nas paredes, olhar o mundo do escuro das frestas. E elas continuam lá, no mesmo lugar, nem um pouco mais largas, para refúgio da alma.
Os dois… No meio da fumaça. Fogo nas folhas secas de outono. Um torce que as chamas atinjam as folhas da árvore, o outro treme nas pernas pela possibilidade de ser descoberto. Rasuras. Qual o motivo de não viver completamente a perversidade infantil? Por que o olhar enviesado? De um lugar já comido pelas traças do tempo. Continuam vivos os dois. Cada qual morreu um pouco. Repetir a infância no ovo flutuando na sopa enquanto o sósia olha Carol como se fosse Clara, e que ela não saiba, imagem de mulheres superpostas, Clara olhando o companheiro com preocupação, ou Carol?. A opção de enclausurar-se na casa, sem ver o outro que acabara de chegar da rua, rejeitar as correspondências, alimentar o gato e sentar-se diante da geladeira, no canto a criança perdida nos artefatos ficcionais da realidade, no ambiente, orgia de personagens, dança profana ao redor de uma fogueira, o fogo no olho dos dois, nos mistérios das chamas, nas imagens que se amontoam, ali o devir, o homem na mesa colocando o ovo no caldo verde diante de uma mulher de nome Carol, e o sósia, fantasma, cansaço inclinado sobre o piso, como se por ali passasse um rio e ele estivesse a ponto de mergulhar.
(continua)
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