Retiro chapéu e casaco da estaqueira e os visto. Pego a chave dependurada no prego na parede. Olhos de lagartixa. Comparação do outro de mim, em algum momento. Ajeito-a no buraco da fechadura. Duas voltas provocam o ruído seco da trava. Ajeito a palma da mão na maçaneta fria, forço um pouco para baixo, uma claridade abre-se em leque e ocupa parte do corredor da casa. Protejo-me da luz com a aba do chapéu, assim entra obliquamente, sem agressividade. Há barro no limpa-pés… Afasto a estranheza. Não desejo mais respostas. Pego a chave, puxo a porta pela maçaneta até ouvir o ruído de travamento, e tranco-a. Fora, um barulho ensurdecedor. Irrequieto, adianto alguns passos. Cabisbaixo, refugio-me nas sombras. Depois mergulho nos rostos. Carcaças a proteger a mesma enunciação de palavras, ideias e opiniões. Não preciso de espelhos no entorno, meus outros me bastam, nos suportamos, vestimos a mesma máscara. Como arquicêmbalos, com suas infinitas notas musicais em cada oitava. Eu me enclausuro em um grande espelho que adorna a loucura. O boteco fica a um quarteirão e está cheio. Ninguém suporta o crepuscular sem usar alguma espécie de droga. Ele também está lá… O sósia. O conflito contínuo entre a lucidez e a embriaguez. A luta com o duplo: Em mim, tu vivias – e, em minha morte, verás, nesta imagem que é também a tua, quão completamente assassinaste a ti mesmo…
Eu me encontro onde ele estava antes de entrar em casa, às 17h30. Está lá, em um dos cantos, o que dá para os fundos do bar. Desde criança, revisitamos os vértices, lugar de esconderijo do imaginário, só assim possível o passado do futuro. Criança, de cócoras, é o espaço predileto para curtir a raiva e chorar escondido, construir diversidades intemporais. O cheiro de naftalina… Nenhum gesto ou aceno. Eu cá, ele lá. Era como se habitássemos dois mundos diversos. Quem do outro lado, ilusão imagética provocada pelo espelhado da memória. Talvez seja o contrário. O mesmo nariz aduncado protegendo-se nas dobras das paredes de um bar: Enfim senhor… o senhor não é meu próprio nariz?
Não e sim… Vagar na ausência é quando a ilusão da presença torna-se mais intensa. Repetir sem compartilhar. Cada qual em uma circunvolução encefálica, esconderijo sem pontuações dos segundos. A tosse depois de cada trago, o lenço emporcalhado com a podridão que vem de dentro. Jogo o dinheiro sobre o balcão e observo minha mão ao abrir o maço de cigarros. As pontas dos dedos ferruginosas. Nem morto perde-se o maldito vício. Ninguém é livre de alguma tendência. Não é da voz popular, de modo jocoso, que o cirurgião é o cidadão que encontrou um modo socialmente aceito de cometer seu crime? E foi assim que a notícia chegou. A cirurgia foi perfeita, mas… Percebi algo de prazer nos olhos de quem nos dava a notícia. Ou não? Talvez a necessidade de adotarmos um culpado. Encontramo-nos logo ao sair do hospital.
(continua)
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