23º Episódio – Folhetim (II sequência de novelas) – O MÊNSTRUO MÁGICO DAS ORQUÍDEAS GRÁVIDAS – Folhetim em Setenta Episódios por Carlos Pessoa Rosa

Saciada a sede, o animal vai ao alimento. Fica o ruído do gotejamento. O pequeno animal jamais saberá daquele mundo que assunta questões desconhecidas, olhos parados, regozijo só no pensamento, expressão a mirar estranhezas, lugares onde ausente a matéria, indiferente à sujeira ao redor, às formigas que avançam pelos cantos levando tudo que encontram pelo caminho, às baratas que já não têm preocupação com o local da desova, às lagartixas que encontram ali alimentação farta.

Adiante, sentada junto à mesa, um vulto, figura feminina, a observá-los em atroz privação de fala. Sorria? O ruído do gato em disparada fuga, pelos eriçados, como se diante de um fantasma, levou-o a desviar-se por um tempo da atenção dirigida à mulher. Quando retornou… Encontrava-se sozinho. Só e delirante. Amaldiçoou o animal. Levantou-se e abriu a geladeira. Tinha o gosto de outra mulher nos lábios. Saudade é esse materializar o extinto ou o distante; possuir os ausentes. Desvario que ainda o mantém preso à vida. Mas é a morte que o apavora; e atrai. O receio de não tocar mais o próprio corpo, os pertences, de ver sua história perdida na prateleira ou gaveta de alguma biblioteca pública, como personagens esquecidos de alguma obra ficcional. Ser o possuído pela lembrança do outro. Desvario, talvez…

A sala quase vazia. Uns poucos parentes. A mãe de preto, véu sobre o rosto, orando baixinho, nunca a vimos chorar, o cheiro de parafina queimando, as coroas ao homenageado real, mas fora da cabeça, não há mais poder a se exercer, o rei agora é carne morta, a vitória é de tânatos, a coroa ficará sobre o túmulo até a natureza levar ou alguém roubar para reaproveitamento. No centro, a imagem de um corpo estirado à visitação pública, narinas tapadas pelo algodão, encoberto por flores, o derretimento da vela e das horas, o defunto diante da euforia dos vermes, o paradoxo existencial entre a beleza da origem e o pavor do fim a tornar aterrorizante a vigília. É nossa própria morte que nos assusta. Viver travestido de motivos e aparências, de uma estética, fruição e linearidade oferecidas como alimento às bestas feras que dentro de suas togas vomitam erudição e saber. Nunca lhe serviu. Curtia o noturno, por atonal. Kafka? Autor predileto, sim, mas sem o peso da culpa. Com uma pitada de devaneio e embriaguez.

 

(continua)

Carlos Pessoa Rosa

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