21º Episódio – O MÊNSTRUO MÁGICO DAS ORQUÍDEAS GRÁVIDAS – Folhetim em Setenta Episódios

Deu um primeiro passo. Caminhou pelo velho e conhecido corredor de madeira corrida, pé direito alto, com lentidão pegajosa, pés enraizados em inquietações. Seguiria de olhos vendados, sem dar um tropeção ou desviar-se do destino, não precisaria das pernas para alcançar o escritório, bastaria a imaginação, estão todos onde não mais, apesar de único sobrevivente. Habituara-se ao ranger dos dentes e aos passos ásperos de seus fantasmas, rastros pálidos da história dos personagens que passaram por ali, o mofo a resenhar acasos na umidade da parede, vontade nenhuma de retornar à rua, fechar a porta representava dizer não às bestas sérias que infestavam a repartição pública onde trabalhava; e as ruas. Atravessou o longo corredor de luz pouca como se penetrasse a própria solidão, um retorno aos brotamentos ocorridos na escuridão uterina. E não havia nada de trágico ou sinistro no trajeto. Não portava arrependimento, rancor ou doença. Ao contrário, a atmosfera ali posta permitia-lhe tocar os afetos, ser tocado por eles, experimentar a estranheza fronteiriça no tegumento, nos pelos que fugiam pelas narinas e ouvidos. Modo de reconhecer e experimentar certa alegria revolucionária. Rir e sentir-se alegre, sem os preconceitos intelectualistas, não dos sábios, que estes trabalham com o sentido de justiça, verdade e razão, mas dos sabidos que preenchem o vazio acadêmico com teses inúteis. Alcançar o enganoso e o falso, por poético. Sem culpas. Nunca se deixou afetar por elas, nem viveu sustentado pelas falsas verdades coletivas e engajamentos políticos. Agia como um molusco dentro de seu invólucro calcário, acomodando-se à intimidade e ao passado; aproximando-se do escritório.
Às bestas sérias, o veru! Disse a um professor de ciência. Arrojo adolescente. Custou-lhe dois dias de suspensão e o sermão passado pelo pai. Mas não se arrependera. Bastaram para que a frase se transformasse em bandeira e lema. Dizia um não às simplificações e aos artifícios que tentavam tornar a vida suportável. Daí deixar-se levar pelo piso esgarçado, como se adormecido, pronto a receber as representações do inconsciente. Sonhar acordado… Sem consolos a simular garantias à existência. Fechada a porta, rompia-se com os delírios da linearidade, com a noção de tempo e espaço, mergulhava-se no fortuito e casual, investia-se, por instinto, no sacro e no profano, no longo corredor da individuação, que terminava em um amplo salão abarrotado de livros.
 
(continua)

Carlos Pessoa Rosa

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