20º Episódio – O MÊNSTRUO MÁGICO DAS ORQUÍDEAS GRÁVIDAS – Folhetim em Setenta Episódios

Dois guardas conversam próximo, um cão passa perto da mulher queda, fareja o corpo, levanta a pata traseira e urina, dá uma última olhada e vai embora. Também não liga, o sósia transformou-se em gelo, tem os passos pesados, são sessenta nas têmporas, o corpo discretamente envergado, pescador de solidão, não há mais ninguém, fala sozinho pelos cantos, a porta com o animal no frontão. Pegamos a chave do bolso do casaco. A sineta agitada, pego as cartas, olho os remetentes, sem curiosidade, alguém tecla no escritório, ouve-se um teclar lento, ele já lá, sempre apressado, falta inspiração, olho os aposentos, passados que pesam repensar, entro no escritório, separo-me da maleta e do casaco, folgo a gravata e desabotoo a camisa. Procuro o gato, dois olhos assuntando, ele pula, dá uma volta completa ao redor de meu corpo e segue na direção da cozinha para onde também vou, ruído da velha Remington Rand cada vez mais distante, coloco a ração no recipiente que carrego do escritório, o gato beberica água na torneira, sento-me à mesa, sozinho, ouço gemidos no corredor, o sacana se masturba, talvez imaginando Carol viva, entra suado, abre a geladeira, pega um ovo, mas não tem onde colocar, não há sopa, não há caldo, o felídeo foge em disparada pelo corredor, o chão imundo, mais ainda com o ovo quebrado no chão, sente muita raiva, uma lágrima desce do rosto dele, raridade nos últimos meses, o corpo vai entrar em putrefação e ninguém perceberá que na casa habita um defunto, na tela do computador a história incompleta (e que nunca será finalizada). O marido atravessa o corredor segurando o suspensório, alisando-o com os dedos, retira os sapatos, Clara entrega-lhe os chinelos, depois segue para a cozinha para colocar o caldo verde na mesa, eu sentado em um canto, o outro de mim espiando, e lá vinha mais um bofete, a correria para o quintal, debaixo da jabuticabeira, a copa despejando gotas grossas e frias sobre nossas cabeças, eu ainda tentava alegrá-lo fazendo micagens, imitando o velho, transformando-o em um diabo, era o que atenuava um pouco a revolta contra um pai que nasceu para não ter filhos.
Entre nós, só os contornos são semelhantes, um contagiando o outro, mas aos olhos de Carol não há distinção, ela admira a resultante da loucura, um sujeito dentro de uma armadura, protegendo-se dos contatos e dos afetos, criar podia ser uma saída, desconstruir, dar forma e consistência a novas representações, identidade na loucura, único modo de o não-sentido apressar a viagem final, mas ainda restam os delírios alimentados na esfera do absurdo, equilibrar-se na tênue linha que nos separa do desvario, como em Paul Klee, em O Saltimbanco, somos mais linhas que planos ou patamares, fina casca onde rupturas ocorrem a um simples sopro, e nós, eu e o outro de mim, sentados diante da tela, em crise criativa, resta muito pouco a representar, todos se foram, e não, de um modo ou de outro. Aqui o não-lugar, nem dentro nem fora, as janelas sempre fechadas. Não vivi Balzac… Terminar a obra é morrer e enterrar-se. O livro será obra nunca terminada, nunca definitivamente, ponto final será a última viagem do autor, depois que todos não mais presentes, a porta com animal no frontão, escancarada, o cheiro de podre nas narinas de quem matou tio Anastácio, cheiro mortiço a desvendar o segredo que habitava aqueles aposentos, não haverá herdeiros, apenas fantasmas, o outro de mim a testemunhar e endossar tudo que escrevo, quero o corpo cremado, as cinzas deverão ser jogadas debaixo de uma jabuticabeira, quero atapetar de sorriso negro o tronco da árvore, ser luto suculento e atraente, dizer às crianças que a morte é um fato, mas não um fim, como a obra.
 
Capítulo IV: Às bestas sérias, o veru!
17h30. Enfiou a mão no bolso do capote. Remexeu com os dedos até pegar o que procurava. Retirou-a. Trazia uma chave antiga. Somente a pega lisa e brilhante. Os dois detalhes, lado a lado, esféricos, pareciam os olhos de lagartixa. Sorriu com a lembrança de infância. O restante era de uma aspereza rústica e apresentava pontos de ferrugem. Afastou a chave da visão e encaixou-a na fechadura. Demorou um tempo, como se estivesse diante da possibilidade de desvendar um grande mistério. Rodou-a duas vezes. Ouviu-se o estalo de abertura da trava. Retirou a chave da fechadura e apertou-a fortemente contra a palma da mão. Devolveu-a ao bolso. Abraçou a maçaneta com a mão livre e movimentou-a o suficiente para sentir a porta sem resistência. Abriu-a com cuidado, às caladas. Não queria incomodar. Talvez evitar a sineta… Perseverou durante alguns segundos nos ruídos ao redor. Quando ficaria livre deles? Atritou a sola do sapato no capacho colocado na soleira da porta. Clara não deixaria o limpa-pés neste estado… Mas Clara apenas memória. Entrou. Ouviu-se um longo suspiro a ocupar o silêncio. Cessação dos ruídos de fora… Adquirira o hábito da surdez quando bem desejasse. Abandonou qualquer tentativa de compreender a obscuridade e o caráter fortuito da vida. Nem os sons e as vozes que não dependem da audição e que tanto o atormentaram, hoje fazem sentido. Aprisionado em vozerio próprio, toca o sentido oculto dos sonhos, o adensamento das pausas, mas sem a ansiedade da juventude. Tudo não passa de um jogo… Um jogo com regras variáveis ao infinito. Pior, o adversário um ditador e trapaceiro. Não importa a tática, não venceria uma única partida, o homem não passa de um perdedor, esboço no escuro, como o experimentado ao fechar a porta, vaga luz indireta, corpo vazio, espelho sem imagem, sombra.
Retirou novamente a chave do bolso do casaco, ajeitou-a na fechadura, bastam duas voltas para o travamento, depois dependurar a chave em um prego colocado ao lado do cabide. O alívio ao romper com a hostilidade de fora, com o maneirismo hipócrita das relações que antes resolvia com uma dose de ironia, mas hoje nem isso alivia; entranhar-se no avesso. Descansou o chapéu e o casaco na estaqueira que fora do pai. Esvaziado de qualquer tentativa de consolo, aproveitou-se da teimosia da luz que espiava a escuridão por debaixo da porta para pegar as correspondências esparramadas no chão. Repassou-as uma a uma diante da arandela com mortiça luz e, sem acrescentar novas linhas ao rosto ou ater-se a alguma em particular, voltou-se para o interior da residência. Ninguém que observasse a frente da casa, parede mal conservada, com o rosto de um leão fuliginoso como adorno no frontão, construiria na mente aquele labirinto interno, tantas eram as portas e dobras ao alcance da vista. Viria do escritório o som do teclar da máquina de escrever? Um retângulo de luz vazava no meio do corredor, vinha de lá o som batido e caótico da velha Remington Rand que tanto o incomodou, não se livraria mais dos vestígios que marcaram o passado, materializando-se, dos fantasmas vivos que habitam a memória e caducam ainda hoje.
(continua)

Carlos Pessoa Rosa

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